memória digital e o papel do computador na minha geração
o impacto do computador na geração de quem tem hoje por volta de trinta ou quarenta anos
Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
Ouço sempre falar que “as novas gerações” não saberiam mais utilizar computadores tradicionais ou mesmo interfaces de software que não aquelas presentes em dispositivos móveis. Há certamente muito de exagero nisso, mas digamos que também exista um pouco de verdade: para quem hoje tem menos de vinte anos ou por volta disso os computadores já não exercem mais o mesmo papel central que exerceram em minha geração (que agora se aproxima dos 40 anos).
Essa centralidade desses aparelhos em nossas vidas me parece ainda mais intensa em um país periférico como o nosso, em que recursos de tecnologia digital e aparelhos eletrônicos são usados intensamente até ficarem inoperáveis dados os altos custos e os baixos salários. Por conta disso, esses artefatos acabam constituindo marcos de memória — referências de lembranças de trechos inteiros de vida. O que segue são aqueles que me acompanharam em distintos momentos da vida. Gosto muito de relatos desse tipo e recentemente isso foi tema de uma conversa repleta de lembranças interessantes no Órbita, fórum do Manual do usuário. Seguem aqui as minhas próprias lembranças.
486 DX2 66MHz
No meio dos anos 1990, após o Plano Real se consolidar, quando tinha por volta de dez ou onze anos, chegou à casa dos meus pais — então um pequeno apartamento na Zona Leste de São Paulo — o nosso primeiro computador. Na ausência de um espaço mais adequado exclusivo para acolhê-lo, o micro, como era chamado, passou a ocupar a nossa pequena sala de estar, disputando a atenção com a velha televisão. Era um conjunto bastante espaçoso de dispositivos: um gigantesco monitor (apesar das limitadas 14 polegadas), um gabinete pesado, teclado, mouse, estabilizador e as infames capas que deviam ser tiradas, dobradas e colocadas a cada uso do sistema — ritual que refletia o certo fascínio que tínhamos pela novidade e a necessidade de evitar qualquer tipo de desgaste em uma aquisição então tão cara. Tratava-se de um desses computadores “sem marca”, montados em uma das inúmeras e anônimas lojas de informática que proliferaram à época.
Apesar de modesto para a época — pois a essa altura já existiam PCs dotados dos famosos e então sofisticadíssimos processadores Intel Pentium — aquele aparelho soava como uma avalanche de nova tecnologia. Salvo engano, a configuração era a seguinte: processador 486 DX-2 com frequência de 66MHz e 4 MB de memória RAM. O disco rígido possuía apenas 80 MB (ou algo assim). Pouco tempo depois de sua chegada, descobríamos qua faltava nele o então infame “kit multimídia” — composto por leitor de CDs, placa de som e outras atualizações — que seria adquirido um ou dois anos depois. O sistema rodava versões piratas do MS-DOS 6.22 e do Windows 3.11, além de jogos como Stunts e Pinball Fantasies, que joguei à exaustão. Numa época em que nem sonhávamos com acesso à internet, passar horas explorando as várias possibilidades de configuração do sistema era um passatempo usual.
Permanecemos com este aparelho por meia década: ele só seria trocado no ano 2000, quando eu fazia curso técnico de desenho de construção civil e precisava de algo mais novo para estudar AutoCAD.
AMDs
No ensino médio e no início da graduação convivi sucessivamente com dois modelos igualmente provenientes do mercado cinza, ambos com processadores econômicos da AMD: primeiro, no ano 2000, com um K6-2 500 MHz e em 2002 com um Athlon XP rodando a uns 1500 MHz. Eram os anos áureos da chamada “Lei de Moore” — quando, grosso modo, velocidades de processadores duplicavam a cada 18 meses — e em pequenos períodos de tempo os saltos nas especificações eram significativos. Tínhamos também um novo monitor com incríveis 17 polegadas — que apresentava, no entanto, míseros 1024×768 pixels. Foi também o momento de chegada da internet em casa: para quem vivia na periferia de São Paulo no início dos anos 2000 isso era definitivamente uma abertura de horizontes sem precedentes, mesmo que numa navegação discada limitada aos horários de pulso único.
Nesses computadores joguei Baldur’s Gate, Neverwinter Nights, The Sims, SimCity 3000, entre outros jogos. Ainda adolescente aprendi a usar AutoCAD e 3D Studio Max — este rodando de forma bastante precária, evidentemente. Descobri a Wikipédia e a possibilidade de colaborar na produção de novos verbetes. Também brinquei com instalações Linux: por conta disso lembro de ter acesso a navegadores com abas — como o Firefox — numa época em que as pessoas ainda estavam acostumadas ao Internet Explorer 6. Foi também a época da gravação caseira de CDs de música após passar madrugadas baixando arquivos MP3 com faixas em 128kbps.
HP Pavilion
Em 2006, no terceiro ano da graduação, ganhei de meu pai um laptop com configuração atualizada e um pouco mais adequado às necessidades do curso. Salvo engano era um modelo zv6000 ou similar da HP — como o que aparece nesta imagem. Apesar de suas qualidades (gravador de DVDs, leitor de cartões de memória, placa gráfica dedicada, 512MB de memória RAM e 80GB de HD), era um verdadeiro trambolho — pesado, feio, desengonçado, repleto de adesivos alusivos aos processadores e com acabamento grosseiro de plástico imitando metal —, mas um trambolho que eu adorava. Ao menos era resistente: várias vezes caiu no chão, resistindo aos impactos mas acumulando amassos e pequenas fissuras na carcaça. Eu atravessava a cidade de ônibus carregando aqueles pesadíssimos três ou quatro quilos na bolsa, às vezes todos os dias. E apesar disso ele foi fundamental para eu vencer disciplinas de projeto na graduação. Esse computador foi intensamente utilizado até meados de 2009: o uso recorrente de aplicativos como AutoCAD, SketchUP, a suíte Adobe, entre outros, certamente abusou de sua ventoinha e processadores. No fim da vida, já demonstrava bastante cansaço — e a tinta cinzenta aplicada ao plástico da carcaça a fim de imitar metal já estava bastante gasta.
Macbook de policarbonato branco
Quando o laptop da HP já expressava seus últimos suspiros de vida eu me convenci a comprar um aparelho da Apple, mesmo que o orçamento me limitasse aos modelos mais simples. Queria poder utilizar o então Mac OS X cotidianamente e sentia que se tratava de um dispositivo com vida útil maior que os PCs da época — o que se provou verdadeiro.
O que foi possível comprar foi um Macbook básico de 13 polegadas em policarbonato branco — uma das últimas versões de laptop da Apple produzidas em plástico. Com 4 GB de RAM, 160 GB de armazenamento (à época ainda em HD, antes da difusão do SSD) e processador Core 2 Duo, o aparelho me serviu bem por cerca de meia década. Nesse período acabei também me rendendo ao jardim fechado da Apple, adquirindo em diferentes momentos iPhone e iPad — e por maiores e necessárias que sejam as críticas à empresa e ao seu monopolismo agressivo e destrutivo, há que se reconhecer a qualidade de construção de seus produtos e interfaces. Era um aparelho bonito e agradável, além de leve e prático.
Este Macbook me acompanhou no fim da graduação e nos primeiros anos após a formatura: nele, entre outros, produzi meu trabalho de graduação, virando noites escrevendo, editando imagens, etc, além do projeto de mestrado. Apesar de tudo, um tempo bom.
MacBook Pro Retina (modelo de meados de 2014)
Quase seis anos após a aquisição do Macbook branco, no início de 2015, aproveitando a primeira viagem que fiz aos EUA, adquiri um então recente MacBook Pro básico: tratava-se de modelo de meados de 2014, com corpo monolítico de alumínio, 13 polegadas, processador Core i5 e 8 GB de RAM. A grande e surpreendente novidade era a chamada tela “Retina”, de altíssima resolução — que fazia com que qualquer outro monitor à época parecesse excessivamente pixelado e grosseiro, por melhor que fosse sua resolução.
Foi certamente o aparelho com o qual mais convivi ao longo da vida: permaneci com ele entre janeiro de 2015 e janeiro de 2024 — incríveis nove anos com um mesmo computador. Nele escrevi minha dissertação de mestrado, uma série de artigos e comunicações de eventos acadêmicos, o projeto do doutorado e vários trabalhos de disciplinas da pós-graduação — além de ter feito edição de imagens, desenhos, edição de vídeo e de áudio, entre outras atividades. Apesar de já com quase uma década, ainda me servia bem no fim da vida, apesar de um ou outro engasgo eventual.
Trata-se sem dúvidas de um aparelho bem construído: a adoção do alumínio faz com que, mesmo com o desgaste de uso, ele pareça novo depois de tantos anos de uso — e em função disso é impossível deixar de pensar em como é criminosa a atitude da Apple nos últimos anos em praticamente impedir qualquer tipo de atualização de hardware de seus aparelhos por meio de artifícios como a soldagem de pentes de memória e outras práticas similares. Além disso, trata-se de um aparelho que está limitado eternamente à versão Big Sur do macOS, de 2020.
Macbook Air com processador M2 (modelo de 2022)
Finalmente, aproveitando uma nova viagem recente aos EUA (também após quase uma década da visita anterior) e uma promoção de fim de ano, aposentei o antigo MacBook Pro de 2014 substituindo-o por um MacBook Air de 2022, com processador M2 — o que o torna o primeiro computador em toda a minha vida que não utiliza arquitetura x86, tecnologia praticamente hegemônica na computação pessoal para a ampla maioria das pessoas no planeta nas últimas quatro décadas. Espero conseguir manter esse aparelho também por cerca de mais uma década, evitando descartes desnecessários e táticas corporativas de imposição de obsolescência: por ora ele é adequadamente ágil, leve, e agradável de usar e espero que permaneça assim por mais bastantes anos.
Mais uma vez, por maiores que sejam nossas críticas ao monopolismo e à aversão da Apple aos padrões abertos, há que se reconhecer: algumas funcionalidades realmente impressionam, como a integração instantânea e sem ruídos com o iPad (e demais aparelhos deste jardim murado). Basta levar o cursor do mouse no Macbook para o canto da tela para que ele apareça no iPad (mesmo que se tratem de sistemas operacionais distintos). O tamanho minúsculo do carregador também é uma boa surpresa — é pouco maior que um carregador de celular ou de tablet.
O enorme fascínio que sentia quando criança com o primeiro microcomputador que apareceu na casa de meus pais foi gradualmente substituído por um uso transparente e desinteressado do aparelho à medida que ia trocando de modelo. Mesmo assim, o contato com a materialidade desses aparelhos continua relevante e até agradável: diferente de quem centraliza toda a vida digital no celular, ainda me apego ao ritual de ligar o computador (mesmo que isso signifique hoje apenas levantar a tampa do laptop que permanece o tempo todo ligado) e navegar em seu sistema para resolver minhas pendências. Prefiro produzir textos digitando num teclado que escrevendo — ou ditando para o celular, como provavelmente será comum daqui a alguns anos. Certamente, aliás, estou entre aqueles que ainda associam o comércio digital ao ato de sentar em frente ao computador e avaliar adequadamente a eventual compra em vez de efetuá-la no celular. Frente a celulares e tablets, computadores tradicionais ainda apresentam momentos de desaceleração e desconexão, mesmo que apenas como reminiscência de hábitos antigos. Talvez as novas gerações de fato deixem de utilizar esses aparelhos e passem a fazer tudo em celulares ou em óculos digitais — mas para mim, depois de quase três décadas usando esses objetos quase todos os dias, computadores pessoais continuarão a ser uma referência de memória e de vida.
Eu me identifiquei muito com seu relato, exceto por minha resistência a notebooks e por sua inclinação à Apple. Aos 10 anos eu decidi, após uma conversa com um cara que trabalhava na TI da Caixa, que ia seguir carreira na computação, embora eu não tivesse ideia do que isso era. Mas antes mesmo de ter visto um computador, eu decidi que queria passar meus dias em frente a um. E como bom teimoso que sou, nunca considerei mudar de ideia (mas isso é assunto pra outra conversa).
Como eu queria a área, fui insistindo pro meu pai me dar um computador. Ele quis que eu fizesse um curso primeiro, mas em dezembro de 1996 enfim chegou meu Pentium 133MHz com 8Gb de RAM e 1.2Gb de HD e Kit Multimídia. E em fevereiro de 1997 minha mãe assinou um provedor de Internet pra mim. Foi muito caro, então foi a última vez que pedi um presente ao meu pai na vida. E fiquei com esse computador por 8 anos, evoluindo HD e memória no percurso, mas ao final ele estava praticamente impossível de usar. Depois tive vários computadores Desktop, sempre montados. Eu ia nas lojinhas de informática e escolhia placa mãe, tamanho do HD, memória, e montavam. Só em 2017 cedi à insistência de minha então esposa e aceitei comprar um notebook quando a placa mãe do meu último desktop queimou. E em 2022 troquei por um mais robusto. Mas eu nunca tive absolutamente nada da Apple, nem sequer iPod. XD