visitando o memorial de martin luther king jr.
subvertendo um dispositivo de controle do olhar
Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
Já havia visitado uma vez a cidade de Washington e sua Esplanada Nacional anos atrás, mas foi apenas em viagem recente, realizada em dezembro último, que tive a oportunidade de visitar com mais tempo o memorial dedicado à figura de Martin Luther King Jr.
Trata-se de um conjunto paisagístico-escultórico localizado ao sul da Esplanada, próximo do memorial dedicado a Abraham Lincoln — onde, aliás, Luther King proferiu seu famoso discurso “I Have a Dream” em 1963 — e às margens da “bacia das marés”, corpo d’água ligado ao Rio Potomac e à qual também se articula o Memorial dedicado a Thomas Jefferson.
Todo o complexo paisagístico no qual se insere o memorial de Luther King, assim como os seus adjacentes, constitui um espaço monumental fortemente ligado às narrativas de construção da identidade nacional estadunidense. O complexo é composto pela Esplanada Nacional (o National Mall, em certa medida similar à nossa Esplanada dos Ministérios) e por um sistema de parques, jardins, museus e monumentos com os quais ela se conecta. Ao longo dessas áreas encontram-se diversos memoriais dedicados a ex-presidentes dos EUA e aos mortos em guerras nas quais o país atuou — e em se tratando de país reconhecidamente belicoso, elas são muitas. Alguns desses memoriais são bastantes famosos: além dos já citados memoriais de Jefferson e Lincoln, podemos destacar aquele dedicado aos veteranos da Guerra do Vietnã, com forte impacto cênico nos visitantes em função de seu desenho ao mesmo tempo bastante sutil e engenhoso da arquiteta Maya Lin.
uma exceção em meio ao culto à guerra
Entre presidentes e guerras, no entanto, a presença da figura de Luther King neste complexo se revela excepcional: trata-se do único memorial não só não dedicado a tais temas (presidências ou guerras) como se trata de um espaço dedicado a uma figura notoriamente contrária ao espírito belicista estadunidense. Tal fato reitera a relevância da figura de Luther King para a memória nacional — relevância, no entanto, pasteurizada pelos discursos oficiais, que tradicionalmente mobilizam seletivamente suas ideias a fim de esvaziá-lo de sua radicalidade. Como é de se esperar, no memorial oficial dedicado à sua memória também entramos em contato com um Luther King mais liberal e menos radical. Esse esvaziamento, no entanto, ocorre apenas até uma certa medida — e são os detalhes que fogem a este esvaziamento que me chamaram a atenção.
O complexo da Esplanada Nacional é constituído como um grande dispositivo espetacularde representação da identidade nacional. No eixo principal da Esplanada o Memorial de Lincoln (② no mapa acima) articula-se ao Capitólio (③), sede do Congresso Nacional — ponto focal do eixo monumental. Um eixo secundário, transversal a este, articula a Casa Branca (①) ao Memorial a Jefferson (④). O memorial a Martin Luther King Jr. (MLK no mapa) encontra-se num eixo obtido pelo alinhamento dos memoriais de Lincoln (②) e Jefferson (④).
Para além dos grandes eixos e das grandes visuais próprias do urbanismo barroco que guiou originalmente o desenho da cidade e da Esplanada, a própria disposição dos vários memoriais e demais monumentos opera no sentido de naturalizar ali os valores associados à nação estadunidense, ressaltando sua suposta grandeza e extirpando dali quaisquer signos de contradição. O Memorial de Luther King também está inserido neste sistema de dispositivos de espetáculo e de controle da memória, mas é justamente nesta inserção que aparecem algumas das brechas de que falei acima.
um jogo de olhares
A área dedicada ao memorial de destaca dos jardins e parques circundantes por meio de uma espécie de “portal”. O autor da obra, o escultor chinês Lei Yixin, adotou um partido bastante literal para a composição do conjunto escultórico: a partir de uma célebre frase de Luther King (“Da montanha do desespero, uma rocha de esperança”) definiu-se a implantação de um volume recortado alusivo a uma “montanha” de onde sai um maciço rochoso do qual emerge a figura do homenageado — o no qual consta a inscrição que inspirou o conjunto.
Já são muitas as críticas endereçadas a esta escolha compositiva e a sua excessiva literalidade — bem como ao caráter excessivamente alusivo à problemática tradição de culto à personalidade e exagero figurativo do realismo socialista, com o qual é difícil não estabelecer um paralelo ao nos depararmos com a monumentalidade do conjunto.
Na edição da revista Clog dedicada à Esplanada Nacional, por exemplo, Shane Neufeld denunciou a ausência de inventividade no desenho do conjunto e a timidez em explorar formas mais intensas e mais profundas de lidar com a memória de personagem tão importante: “Dentro dos limites do memorial, há pouco espaço para exploração, poucas surpresas ou momentos de surpresa espacial. E apesar da habilidosa e “rushmorificada” representação de King realizada pelo Mestre Lei Yixin, o pré-requisito sóbrio de realismo em uma escala monumental atua contrariamente a quaisquer oportunidades mais espacialmente progressivas que o memorial pudesse ter atingido.”
Apesar das críticas à composição e à figuração, são justamente algumas das escolhas mais ou menos sutis realizadas exatamente nestes aspectos da obra que estabelecem um interessante contraponto àqueles dispositivos especulares (e espetaculares) de controle e de pode sobre os quais falei acima.
Como comentei acima, o memorial está localizado mais ou menos no alinhamento entre os memoriais de Lincoln e de Jefferson. De fato, a rocha cortada ao meio orienta sua implantação exatamente neste eixo, como se vê no mapa acima e nas imagens abaixo.
No entanto, o maciço rochoso que “sai” da rocha cortada não está no mesmo alinhamento: é como se ele tivesse se inclinado para fugir desse alinhamento (conforme a linha cinza na imagem abaixo). Com efeito, estivesse essa rocha saliente alinhada no eixo original, a figura de King olharia diretamente para o Memorial de Jefferson no outro lado do lago — Jefferson, lembremos, era um notório proprietário de pessoas escravizadas.
Não só a rocha se inclina para não olhar diretamente para o antigo escravocrata, mas a própria figura de King escavada nela, de braços cruzados, olha (um tanto quanto irritado ou contrariado) para o outro lado, como que evitando a todo custo apreciar o memorial de Jefferson. Olhando para o poente e desviando o olhar do passado, King manifesta sutilmente sua desaprovação às problemáticas origens da nação estadunidense, cujos celebrados pais-fundadores fizeram de tudo para evitar lidar com a ferida da escravidão.
Apesar da literalidade e pouca inventividade compositiva do conjunto, são esses nem tão sutis detalhes que o tornam bastante potente em apontar para a herança da escravidão na construção da identidade nacional desse país e em subverter o seu posicionamento no interior do grande dispositivo de controle da visão que são os eixos articulados do conjunto da Esplanada Nacional.
E ainda que a seleção de citações suas inscritas nas paredes do memorial tendam a reduzir ou a mascarar sua radicalidade — já que elas, descontextualizadas, apelam fortemente ao ethos liberal —, estas pequenas subversões são suficientes para dotar este memorial de impacto simbólico suficiente para explicitar as contradições desse grande espaço ligado às narrativas canônicas e hegemônicas que é a Esplanada Nacional.
Mais imagens do memorial encontram-se neste álbum do Flickr.