vestibular: por que literatura e não artes visuais?
por que exigimos que os estudantes conheçam machado de assis e clarice lispector em vez de almeida júnior e hélio oiticica?
Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
Certas pautas são recorrentes nas redes sociais — e em particular no Twitter (atualmente conhecido como “X”), onde o frequente ressurgimento de certas celeumas já se transformou até em piada interna (o celebrado “calendário anual de tretas”). Uma dessas questões eternamente ressurgindo, não por acaso quando costumam se anunciar obras indicadas para leitura nos exames vestibulares, diz respeito à necessidade ou não de um vestibulando — ou de um estudante de ensino médio de modo geral — entrar em contato e ler obras presentes no cânone literário ocidental, ou, em particular, da língua portuguesa.
os clássicos e o vestibular
A questão se desdobra em várias: por que apenas o cânone ocidental? Não seria o caso de expandir para obras de ficção de gênero (ou de “literatura de entretenimento”)? Insistir no cânone não significa insistir nos mesmos velhos homens brancos de sempre? A função da escola é criar pessoas eruditas ou dialogas com as referências culturais delas? Por que Brás Cubas e não Harry Potter?… e por aí vai.
Não raro, a discussão — feita, obviamente, por pessoas na maior parte das vezes totalmente alheias ao universo da educação ou da literatura — desliza pelas mesmas platitudes de sempre. Não raro, argumenta-se (ignorando todo um acúmulo de discussões já feitas por educadores e pesquisadores da educação) que o fundamental não seria o “conteúdo” ou a “forma” da leitura, mas o simples ato de “ler” — o que justificaria escolhas supostamente mais palatáveis para estudantes tão jovens. Utilizando-se de forma rasa e seletiva de um suposto espírito freireano (e que de freireano, aliás, não tem nada), argumenta-se que mais do que obrigar a leitura de obras alheias ao universo cultural dos estudantes — tão acostumados que estão a lidar com obras da indústria da cultura de massas — o correto seria indicar séries literárias “pop”, como os livros da série Harry Potter.
Não sou educador para entrar adequadamente nesta seara, nem tenho autoridade para isso, mas me permito fazer alguns comentários. Entendo, no entanto, que parte do raciocínio esteja correto — de fato, uma educação democrática e libertária de matriz freireana parte do contato com o universo vocabular e cultural dos estudantes e caso o tal bruxinho faça parte dele (o que nem me parece ser mais o caso) talvez ele devesse mesmo fazer parte do processo formativo. Há dois problemas aí: o primeiro é o fato de que o contato com o contexto cultural dos estudantes constitui um ponto de partida do processo formativo, não seu ponto de chegada. A ideia, afinal, é ler a palavra para ler o mundo, num processo de abertura de horizontes — do contrário, cairíamos na armadilha do chamado “novo ensino médio”, terrível precarização das práticas de ensino formal. Um bom professor até pode partir de Harry Potter, mas seu objetivo não é necessariamente ficar nas histórias do bruxo. O segundo problema da forma como tal argumento é mobilizado é a instrumentalização da literatura como mera forma de estímulo à leitura — como se a obra não fosse importante, sendo exclusivamente relevante o cultivo da habilidade leitora, numa retórica puramente neoliberal e profissionalizante do ensino.
palavra inquestionável
Independente do sentido que tome a conversa nas redes sociais — e eu diria que até mesmo em círculos acadêmicos —, existe uma questão que permanece sendo não feita (e nem acho que devesse ser feita, mas sua ausência diz muito):
Por que naturalizamos tanto a presença e o protagonismo da literatura seja no currículo do ensino médio seja no vestibular enquanto consideramos normal a ausência de outras expressões artísticas, como as artes visuais?
Por que tanto destaque à palavra escrita em detrimento da expressão visual, da expressão corporal, da expressão sonora, entre outras? Por que exigir conhecimento do cânone literário e não do cânone artístico quando de um exame vestibular? Por que exigir conhecimento da obra de Machado de Assis ou de Clarice Lispector e não de Almeida Júnior ou Hélio Oiticica (só para ficar, é claro, no cânone)?
A pergunta é obviamente absurda. Não advogo nada disso — até porque devíamos lutar pelo fim do vestibular, não pela sua transformação. Mas ao fazer essa pergunta evidenciamos o protagonismo literário (e, mais do que isso, da palavra escrita) na educação formal ao mesmo tempo em que ela aponta para o menosprezo das demais manifestações artísticas.
Como muitos pesquisadores já cansaram de apontar, crianças entram na escola manifestando-se por meio de desenhos, brincadeiras corporais, sons, músicas e outras formas de expressão — mas não por meio da palavra escrita. Doze anos depois, contudo, esses adolescentes deixam a escola sabendo (mais ou menos) escrever, mas muitas vezes tendo deixado completamente de desenhar, musicar, dançar ou a promover quaisquer outras expressões artísticas — que passam, infelizmente, a serem tidas como “dons” ou “habilidades especiais”, enquanto a palavra escrita seria uma habilidade comum.
A escola é, sem dúvidas, o lugar onde se manifesta de forma mais perversa a ditadura da palavra sobre a imagem (e sobre todas as demais formas de expressão). É o lugar do disciplinamento da expressão, de uma uniformização logocêntrica do agir no mundo.
O resultado é esse mundo estranho em que as pessoas, quando se deparam com uma imagem, ficam desesperadas em busca de uma explicação em palavras sobre seu suposto significado.
Não quero, é claro, cair no erro de considerar a escola uma panaceia ou uma quimera. Isto seria repetir discursos problemáticos como aqueles amparados em afirmações do tipo “tal assunto devia ser ensinado nas escolas”. Mas essa celeuma toda ajude a pensar nos problemas e limites dessa nossa sociedade logocêntrica e curiosamente iconofóbica (ainda que mergulhada em imagens).