quadrinhos, literatura e a ditadura da palavra sobre a imagem
não: quadrinhos não devem se resumir à sua dimensão literária
Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
A recente candidatura de Maurício de Souza a uma vaga na Academia Brasileira de Letras reacendeu nas redes sociais um (falso) debate que já se pensava morto e enterrado: seriam as histórias em quadrinhos uma forma de literatura?
A resposta para esta pergunta é razoavelmente consensual entre aqueles dedicados ao estudo acadêmico dessa forma de expressão: não, quadrinhos não são literatura porque constituem uma expressão artística particular, autônoma e marcada por uma série de especificidades, ainda que seja atravessada por uma dimensão literária. O teatro e o cinema, afinal, também possuem dimensão literária e nem por isso são literatura, mas igualmente constituem uma forma de expressão particular.
Não é preciso enumerar os argumentos para embasar tal negativa, já que isto foi feito de forma bastante competente no canal de Alexandre Linck no Youtube, neste texto de Dani Marino, entre outros espaços.
Mesmo que por “literatura” se entenda qualquer tipo de “texto cultural”, para além daqueles usualmente cobertos pelos estudos literários — perspectiva a partir da qual absolutamente qualquer coisa pode ser entendida como texto, seja uma cadeira, uma paisagem, uma arquitetura ou uma HQ —, trata-se de um caso em que o mundo inteiro fica reduzido a uma dimensão textual, independente das especificidades de uma instalação, perfomance, pintura, desenho ou história em quadrinhos.
O que mais me incomodou nisto tudo, contudo, foi a maneira como pesquisadores ligados ao campo dos estudos literários e entusiastas de quadrinhos insistiram em argumentar pela capitulação dos quadrinhos à literatura a partir de argumentos bastante problemáticos: em suma, a mera existência da dimensão literária das HQs já seria suficiente para que elas fossem reduzidas a uma forma de literatura. Em última instância, sinto que esses argumentos são ainda o sintoma de uma sociedade que coloca a palavra num pedestal superior à imagem — porque, afinal, é isto que está em jogo quando se reduz a complexidade formal dos quadrinhos à sua dimensão literária.
ditadura da palavra
Lembro sempre de uma entrevista do professor Ulpiano Meneses em que ele discute a maneira como se faziam visitas escolares a museus no passado: aquela multidão de crianças com seus caderninhos e canetas a tiracolo eram orientadas a copiar sistematicamente as legendas das peças em exibição, a fim de preparar relatórios de visitas a serem avaliados mais tarde pelos seus professores. Em vez de apreciar os objetos expostos, sem sequer olhar para eles, os alunos limitavam-se a coletar as informações presentes a respeito deles — informação que, supostamente, bastaria para compreendê-los. Ulpiano Meneses associa este fenômeno ao caráter ainda por demais logocêntrico de nossa sociedade.
Ao mesmo tempo, tudo isso me faz lembrar de Francis Bacon argumentando que “a narrativa é a inimiga natural da visão” em sua busca por uma pintura que, ainda que permanecendo nos limites do figurativismo, fugisse de qualquer pretensão ou armadilha narrativa. Fatalmente lembramos também de Jorge Larrosa e a maneira como ele propõe um saber de experiência em oposição a um saber informado — um saber construído a partir da exposição de nossos corpos e mentes ao mundo, aberto a todas as formas de percepção em oposição a um saber caracterizado pelo acúmulo de informações, sejam elas críticas ou mecânicas.
O universo da arte parece-me justamente aquele no qual esse saber se dá de forma potencialmente mais plena — ao nos afastarmos do mundo da palavra (e do conceito) passamos a lidar com outras formas de percepção e entendimento do mundo, bem como com outros códigos sensoriais e estéticos.
imagem: para além do texto
É nesse sentido que a tentativa de capturar e reduzir as histórias em quadrinhos à sua dimensão literária constitui um processo de negação dessa potência não logocêntrica que outras formas de arte possuem. Não que a literatura não tenha também esta potência, é claro, ao explorar a forma da palavra e do texto.
Contudo, ao privilegiar a dimensão literária dos quadrinhos fatalmente se anulam outras dimensões (como aquelas ligadas às artes visuais) nas quais essa potência é ainda maior. Basta ver o trabalho de autores como Richard McGuire e Chris Ware, por exemplo — ou mesmo obras clássicas como Little Nemo. Ao reduzir os quadrinhos à sua dimensão literária perde-se em grande medida a sofisticada experiência sensorial e não-verbal de obras como estas — mais próximas das artes visuais que da literatura.
Falamos recentemente, inclusive, sobre a obra Aqui, de Richard McGuire, em nosso podcast Fora de prumo. Recomendo a audição :)
A poesia concreta e outras formas de experimentação literária, é claro, se aproximam muito do que venho tratando acima. Mas, mais uma vez, tratam-se de experimentos literários que atuam justamente nas margens e limites do meio, aproximando-se das artes visuais — espaço onde justamente os quadrinhos se encontram. Por que então reduzir quadrinhos à literatura se eles são muito mais que isso?