Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
Inspirado pela conclusão da nova temporada do Pouco Pixel — podcast dedicado a videogames velhos —, bem como pelo anúncio da bem-sucedida campanha para a produção de uma nova temporada prevista para o segundo semestre deste ano, pensei em rascunhar algumas palavras sobre a maneira como o espaço é adotado, representado e agenciado em jogos digitais.
Não é nada muito elaborado, apenas algumas correlações que faço de vez em quando entre jogos e outras formas de representação do espaço. Para uma abordagem mais séria e aprofundada, sugiro a tese de doutorado de Leandro Velloso, intitulada O espaço nos videogames: dentro e fora do círculo mágico.
Embora o espaço dos jogos seja quase exclusivamente bidimensional — com exceção, é claro, dos jogos feitos para dispositivos de realidade virtual ou aumentada —, verifica-se um desejo do mundo dos videogames desde seus primeiro anos em mimetizar a nossa realidade tridimensional exterior. São várias e notórias as exceções, é claro: jogos clássicos como Tetris reconhecem a bidimensionalidade que é própria do meio e operam no interior de seus limites e possibilidades. Contudo, a vontade de reproduzir nos jogos e em seu mundo digital fenômenos ou experiências tridimensionais do mundo “real” — mesmo que com a adição de elementos fantásticos ou desafiadores das leis da física — aparece recorrentemente e mesmo em um dos primeiros videogames: Tennis for Two, de 1958, poderia ser simplesmente um jogo bidimensional imerso numa realidade abstrata, mas seja em seu título, seja em sua jogabilidade está expresso um desejo de mimetizar — mesmo que adotando uma síntese formal bastante exagerada — um jogo de tênis. Desde então esse desejo de mímese da realidade tridimensional exterior será fortemente perseguido por uma parcela significativa dos jogos eletrônicos.
convenções visuais
Seguem as referências e convenções visuais mais evidentes nas diferentes formas com que os videogames tentaram representar espaços tridimensionais em diferentes momentos. Algumas referências são temáticas — como, por exemplo, a maneira como ainda persiste uma abordagem romântica sobre a paisagem em jogos eletrônicos que parece saída diretamente de pinturas de Friedrich. Outras são convenções ligadas à geometria descritiva e a técnicas consagradas de construção de representações em perspectiva.
1. de tennis for two (1958) a super mario bros. (1985): elevação e corte
Uma linha horizontal atravessando a tela, um pequeno segmento de uma reta vertical dividindo-a em dois campos e um ponto — uma “bolinha” — que é raquetada de um lado a outro acompanhada de um rastro curvo indicador de seu movimento. O já citado Tennis for Two (1958), aproveitando a lógica de funcionamento de um osciloscópio, reproduz um campo de tênis reduzindo sua superfície e sua rede em duas linhas, uma ortogonal à outra.
A lógica é a de uma elevação (ou alçado, como preferem os portugueses): convenção visual adotada pelo menos desde o renascimento pela qual se delineiam numa superfície bidimensional a silhueta e os elementos de uma das faces de um objeto ou edificação — motivo pelo qual esta representação também é conhecida como “fachada”.
A adoção desse raciocínio pelos chamados jogos de plataforma, como pode se verificar acima — nos quais a interação com os elementos do cenário e o movimento vertical dos personagens é tão ou mais relevante que o movimento horizontal — estabelece uma relação muito forte dessa espacialidade bidimensional com a forma como são construídos os cortes — uma forma de representação ortográfica produzida por um virtual seccionamento do objeto ou edificação a ser apresentado. Essa forma de lidar com o espaço tridimensional numa superfície bidimensional também lembra muito a lei da frontalidade da pintura egípcia.
Jogos tipo “metroidvania”, aliás, — que abusam sobretudo de cenários interiores labirínticos percorridos por um personagem visto em perfil — são normalmente ainda mais alusivos à lógica do corte arquitetônico, muitas vezes adotando-o explicitamente.
O paradigma visual da elevação/corte se revela bastante oportuno num cenário de limitações tecnológicas que impediam o cálculo em tempo real de gráficos tridimensionais. O uso de “sprites” em vez de modelos tridimensionais para identificar os personagens em jogo também se adapta bem a esta lógica de representação.
Mesmo quando jogos de plataforma recentes passam a explicitar uma terceira dimensão para além dos eixos x e y, a possível referência ao corte permanece, já que muitos jogos adotam quase explicitamente a lógica de representação de um corte perspectivado, estratégia de representação consagrada por exemplo nos célebres desenhos de apresentação de projetos do escritório de Paul Rudolph, como no exemplo abaixo.
No curso técnico e na faculdade sempre gostei de desenhar cortes e elevações: pensando em retrospecto talvez seja pela influência dos jogos de plataforma do Master System e do Mega Drive jogados na infância.
2. projeções oblíquas: de prince of persia (1989) aos beat’em ups dos anos 90
A chamada “perspectiva cavaleira” ou “à cavaleira” (ou ainda de “gabinete”, como também é conhecida nos países anglófonos) se constitui de uma forma bastante engenhosa de representação de uma realidade tridimensional pela criação de um terceiro eixo de profundidade z desenhado em ângulo em relação aos eixos x e y,cujas proporções são mantidas sem as distorções usuais dos desenhos em perspectiva, permanecendo representados ortogonais um ao outro. Do ponto de vista da geometria descritiva, trata-se rigorosamente de uma projeção ortográfica cilíndrica oblíqua.
A depender da forma como essa perspectiva é desenhada, ela pode ser confundida com uma axonometria e, em particular, com uma perspectiva isométrica — mas enquanto na isométrica e nas demais axonometrias todos os eixos apresentam distorções de ângulo e de dimensão, na cavaleira há pelo menos dois eixos que se mantêm sem distorções.
As perspectivas oblíquas são particularmente conhecidas pela forma como foram adotadas pela pintura chinesa. São célebres os enormes rolos de desenhos e pinturas nos quais trechos de territórios, campos e cidades são representados por meio desse artifício. A ausência de pontos de fuga e de um observador fixo torna a apreciação contínua desses rolos possível na medida em que o olhar vai se deslocando à medida em que os desenhos são desenrolados… assim como numa tela de videogame.
Por esse motivo, talvez, a adoção desse tipo de perspectiva (ainda que de forma não rigorosa) em jogos tipo beat’em up tenha se revelado tão satisfatória. Tratam-se de jogos nos quais uma determinada superfície de solo é ocupada por um conjunto de inimigos a serem alvejados pelos golpes do personagem controlado pelo jogador. O caráter contínuo (normalmente da esquerda para a direita) que tais superfícies possuem faz com que o uso da perspectiva oblíqua — sobretudo num momento em que os processadores não conseguiam renderizar gráficos tridimensionais “reais”— se revele bastante adequado. De certa forma, é como se um daqueles rolos de pintura chinesa fosse sendo desenrolado à medida em que o jogo avança.
Caso particularmente interessante é o do jogo Prince of Persia: rigorosamente trata-se de um jogo de plataforma clássico, mas a utilização da lógica da representação em perspectiva cavaleira de parte considerável de seus cenários cria interações distintas com o ambiente.
Outro uso célebre da perspectiva cavaleira (ou mais propriamente da “perspectiva militar”) ocorre na primeira edição do jogo SimCity, de 1989. Embora a maior parte das pessoas se recorte da perspectiva isométrica que ficou celebrizada na versão SimCity 2000, de 1994, a primeira edição do jogo se utiliza de um mapa bidimensional com edificações “puxadas” em ângulo, como em uma perspectiva oblíqua.
3. perspectivas isométricas, dimétricas, trimétricas e similares: de batman (1986) a diablo (1997) e the sims(2000)
Nos anos 1980 uma das maneiras de representar cenários tridimensionais em equipamentos com enormes limitações de processamento e de memória era por meio da adoção de axonometrias de tipo isométrico ou similar. Um caso célebre é o do jogo Batman, de 1986, no qual são apresentados ao jogador, em perspectiva isométrica vista de cima, recintos a serem explorados, nos quais estão escondidas pistas e objetos relevantes para a conclusão da investigação conduzida ao longo do jogo.
Uma perspectiva isométrica apresenta os três eixos (x, y e z) distorcidos igualmente, de forma que o ângulo entre eles no desenho bidimensional seja igual (de 120º) — daí o nome “iso”. Outras axonometrias (representações nas quais ocorrem distorções distintas nos vários eixos a fim de representá-los numa superfície bidimensional) são as perspectivas dimétrica e trimétrica, também eventualmente usadas em jogos digitais.
A graça da perspectiva isométrica, contudo, diz respeito às coincidências (ou ilusões) ópticas que se dão quando arestas opostas de um cubo ocupam a mesma posição no plano bidimensional. Estas coincidências foram fartamente utilizadas pelo ilustrador Maurits Cornelis Escher em suas célebres brincadeiras visuais, nas quais situações surreais ou geometricamente impossíveis são desenhadas em função das características próprias da isometria. Tais impossibilidades lógicas permitidas pelo desenho foram também fartamente experimentadas em jogos recentes como Monument Valley.
A utilização da isométrica se revelou bastante adequada a jogos caracterizados por procedimentos de exploração do cenário com elementos táticos e estratégicos no movimento dos personagens ou unidades controladas pelo jogador. Desta forma, antes da popularização das placas de vídeo com gráficos tridimensionais “verdadeiros”, o uso da isométrica (ou da dimétrica, ou da trimétrica) revelou-se bastante útil em jogos táticos como Commandos: Behind Enemy Lines (1998), em jogos de simulação de estruturas urbanas ou similares como Railroad Tycoon 2(1998), RolleCoaster Tycoon (1999) e SimCity 2000 (embora o primeiro SimCity utilizasse a perspectiva cavaleira) e especialmente nos chamados “RPGs ocidentais” como Diablo (1997), Baldur’s Gate (1998), Fallout (1997), entre outros. A panorâmica e estratégica visão tipo “olho de pássaro” que é própria da perspectiva isométrica permitia particularmente uma interação satisfatória entre o jogador e o cenário por meio do mouse, visto que tais jogos foram produzidos principalmente para computadores e não para consoles.
Dessa leva, no entanto, talvez o jogo em perspectiva axonométrica mais famoso e bem-sucedido tenha sido a primeira versão de The Sims, de 2000. Os designers de The Sims foram bastante competentes em entregar aos jogadores uma interface espacial bem resolvida, pela qual era possível posicionar objetos e mobília, bem como construir edificações de forma ágil e sem maiores dificuldades, numa época em que aplicativos profissionais do tipo CAD ou BIM ainda eram bastante rudes e pesados.
4. perspectiva renascentista: wolfenstein 3D (1992), doom(1993) e a id software
Num momento em que ainda não haviam se popularizado as placas gráficas capazes de gerar gráficos tridimensionais “verdadeiros”, recorreram-se a alguns artifícios gráficos bidimensionais para simular experiências tridimensionais na tela dos jogos eletrônicos. O uso de axonometrias já foi explorado acima, mas no início da década de 1990 desenvolveram-se métodos de simulação de profundidade muito similares aos processos de desenho de perspectivas de um ou dois pontos de fuga desenvolvidos a partir do Renascimento italiano.
A empresa id Software, em particular, ficou bastante conhecida por desenvolver jogos que se utilizavam desse artifício na primeira metade da década de 1990 — e tal qual a presença de um observador fixo na perspectiva central renascentista, tratavam-se de jogos pensados para simular a visão de um personagem representado em “primeira pessoa” (ou seja, aquilo que o personagem vê é o que o jogador vê na tela). Paredes retangulares transforman-se em trapézios e vão sendo distorcidas à medida em que o personagem avança ou retrocede. Wolfenstein 3D(1992), Doom (1993), Star Wars: Dark Forces (1995) e Duke Nukem 3D (1996) são alguns dos jogos mais célebres a utilizarem essa forma de representar o espaço tridimensional que ficou conhecida como “2,5D”.
Trata-se de um “falso 3D” pois o computador não calcula diretamente volumes tridimensionais, mas distorce gráficos bidimensionais de acordo com a posição do observador. Neste sentido, a escolha pela perspectiva central renascentista se revela solução arbitrária, já que outras formas de escorço poderiam ter sido buscadas — as quais até talvez gerassem situações espaciais mais sofisticadas. Contudo, faz sentido o uso da perspectiva cônica (e sobretudo da perspectiva central): trata-se, afinal, de um paradigma de visualidade que nos acompanha há cinco séculos e condiciona o nosso olhar cotidiano. O uso da perspectiva central nesses jogos, dessa forma, é antes uma forma de mímese de um certo regime de visualidade antes de ser mesmo uma mímese do real: representação da representação.
5. “homem de costas” e a persistência do romantismo
Jogos em “terceira pessoa” — sobretudo no gênero conhecido como “ação/aventura” — consolidaram-se como hegemônicos a partir do fim dos anos 1990. Trata-se de uma forma de representação do espaço e da paisagem por meio de uma câmera virtual que acompanha o personagem à medida em que ele é controlado pelo jogador, servindo de mediação entre este e o mundo digital. O personagem e o cenário são produzidos a partir de modelos tridimensionais construídos por meio de milhões de polígonos que vão sendo calculados e recalculados de acordo com os movimentos e transformações do jogo. A persistência da câmera acompanhando o personagem do jogador dá razão à alcunha jocosa que o pessoal do Pouco Pixel atribui a estes jogos: trata-se do gênero “homem de costas”.
Heróis solitários percorrendo cenários perigosos e traiçoeiros em busca de aventura e realização pessoal: não por acaso os clichês românticos que guiam muitos desses jogos são também complementados por um regime de visualidade igualmente romântico. O “homem de costas” digital nada mais é que uma reedição do herói romântico celebrizado na pintura “Andarilho sobre um céu de névoas”, obra mais famosa de Caspar David Friedrich — este próprio talvez o pintor de paisagem romântico quintessencial. Quase duzentos anos depois do encantamento pelos perigos do sublime, tentamos novamente mimetizar esse conjunto de sensações agora não mais em pinceladas mas em pixels e em linhas de código.