Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com. Visite!
O falecimento de celebridades raramente me afeta. Por um lado, dificilmente me apego em profundidade à obra de um ou outro autor em particular. Por outro, vivendo nas agruras do Sul global, parece-me um tanto quanto patético lamentar, como se fosse alguém conhecido ou próximo, a passagem de figuras estelares tão distantes da vida cotidiana de alguém tão insignificante quanto eu.
Não foi o caso com David Lynch.
um raro dia de beleza nas redes sociais
Soube pelo Bluesky — e em seguida pelo Instagram e logo depois por portais de notícias. David Lynch, diretor de alguns dos filmes mais interessantes jamais produzidos por Hollywood, morreu.
O que se seguiu foi uma das coisas mais belas que podiam acontecer nessas plataformas normalmente tão odiosas e estéreis que são as redes sociais. Eram infindáveis relatos de como a obra de Lynch tinha sido fundamental para as pessoas, por diferentes razões, em diferentes momentos, de diferentes formas. Para muitos, o contato com aqueles filmes significara uma abertura impressionante de horizontes — o contato com um universo de possibilidades estéticas, afetivas, poéticas e até mesmo políticas completamente novas e inusitadas. Mais do que isso: a noção de que Lynch se foi nos soava a todos que quem nos deixou tenha sido alguém estranhamente próximo — improvavelmente próximo, por mais distante que ele fosse.
As homenagens foram inúmeras. Lindas, comoventes. Pessoas próximas a Lynch reiteravam sua generosidade, elegância e brilhantismo — aparentemente a imagem do gentleman não era simplesmente uma persona pública que ele cultivava, mas sua expressão cotidiana sincera. Pessoas que nunca o conheceram pessoalmente, como eu, por outro lado, reiteravam sistematicamente como seus filmes nos transformaram.
Toda a “ontologia” de Lynch é baseada na discordância ou contraste entre a realidade, observada à distância, e a proximidade absoluta com o real. Seu procedimento elementar consiste em movimentar-se a partir de uma tomada estabelecedora da realidade na direção de uma proximidade perturbadora que torna visível a substância desagradável do prazer, o rastejamento e o brilho da uma vida indestrutível — em resumo, uma lamínula de microscópio. Lembremos da sequência de abertura de Veludo azul. Após as tomadas que sintetizam a idílica cidadezinha estadunidense e apresentam o derrame sofrido pelo pai enquanto ele rega o jardim (no momento em que ele tomba, o jato de água evoca de forma perturbadora uma urina pesada, surreal), a câmara se aproxima da superfície da relva e apresenta a sua vida explodindo, o rastejar dos insetos e besouros, seu zunido e seu alimentar-se da grama.
Slavoj Žižek
”David Lynch as a Pre-Raphaelite”
o mestre do infamiliar
David Lynch soube melhor do que ninguém como brincar com o infamiliar no audiovisual.
Há quem diga que seus filmes — que, para muitos, iniciaram todo um novo estilo “lynchiano” de cinema — se enquadrem em temas como o terror, o suspense, o thriller, o (neo-)noir, entre outros, apesar dos muitos elementos de comédia entre uma e outra cena mais tensa e obscura. Contudo, mais do que posicioná-los como filmes de terror, suspense ou comédia, talvez a melhor maneira de defini-los seja como uma espécie de audiovisual infamiliar.
O infamiliar é uma sensibilidade que se posiciona entre outras estéticas já conhecidas, como o belo, o sublime ou o pitoresco. Comentada e estudada por diversos autores desde o século 19, quem mais ficou conhecido por tratar dela foi Freud em seu texto “Das Unheimliche”, de 1919, no qual o infamiliar talvez seja melhor definido — e com o qual Freud estabelece uma série de ligações com elementos próprios da psicanálise, como o recalque e a repressão.
Trata-se de uma perturbadora sensação de estranhamento: aquela impressão de que algo está fora do lugar em um ambiente aparentemente perfeito — ou aquela sensação de inquietude que aparece em cenas aparentemente ordinárias no cotidiano, quando tudo indica que alguma coisa se esconde por trás da normalidade. Aquilo que nos parece doméstico, próximo, familiar, conhecido, ordinário, íntimo, no fundo revela (ou parece revelar) algo de obscuro, perturbador, estranho, inquietante. Essa sensação de deslocamento é perturbadora justamente porque não é explícita: no fundo, tudo que pensamos familiar é profundamente estranho. Buscamos conforto no que é familiar, mas essa familiaridade por vezes se revela estranhamente perturbadora.
Foi Lynch, melhor do que ninguém — melhor talvez que Buñuel, que Resnais, que Kubrick, entre outros —, quem deu forma ao infamiliar no cinema. Em seus filmes (como em todo bom cinema) pouco importa de fato o enredo ou o roteiro, o que os torna maravilhosos é essa atmosfera estranhamente perturbadora e ao mesmo tempo comoventemente (in)familiar que ele consegue criar.
contra a interpretação
David Lynch era particularmente conhecido por se recusar a comentar seus filmes — e ficava particularmente irritado quando lhe pediam para explicá-los. Há, inclusive, uma imagem circulando pelas redes sociais em que está registrada uma fala dele a respeito disso, na qual ele ressalta que quando termina de fazer um filme, as pessoas correm para pedir para falar sobre ele — o próprio filme, contudo, já possui tudo o que há pra ser dito.
Lynch também, melhor do que ninguém em Hollywood, nos mostrou que o cinema não deve ser “intelectualizado” nem reduzido a palavras. O cinema é antes de tudo um quadro em movimento, com ou sem som: há que experimentá-lo e apreciá-lo em sua forma, da maneira como ele se apresenta aos olhos e ouvidos. A graça está aí — e não em seu suposto “conteúdo”. Seus filmes recusam toda vã tentativa de intelectualização, são antes experiências audiovisuais que histórias filmadas. Talvez sejam em Hollywood a expressão máxima do manifesto sontaguiano: “No lugar de uma hermenêutica da arte, precisamos de uma erótica da arte.”
Mestre do infamiliar, do onírico e (por tudo o que foi dito) do saber de experiência, Lynch é autor de obras que nunca mais serão produzidas em Hollywood. Uma perda irreparável, gigantesca. Em tempos repletos de porcarias literais e excessivamente didáticas no cinema estadunidense (Nolan, estou olhando pra você), Lynch fará uma falta gigantesca.
Parece, aliás, que o que ele ensinou simplesmente foi ignorado por toda a indústria cinematográfica daquele país: estamos em anos recentes sufocados por cenas pós-créditos cada vez mais neuróticas, vídeos com “final explicado” tentando dar sentido a filmes cuja única preocupação é o roteiro e nenhuma com a forma, franquias que se preocupam mais com o (péssimo) conteúdo que com a experiência audiovisual e cineastas que fazem filmes para pessoas burras se sentirem inteligentes (Nolan, estou olhando de novo pra você). Aliás, em tempos repletos de remakes, reboots e outras produções construídas em torno do mercado da nostalgia, é impressionante como David Lynch soube lidar com a passagem do tempo em Twin Peaks: o retorno, no qual o caráter implacável do envelhecimento e da inexorabilidade da marcha da história são enfrentadas de forma sincera, fugindo de toda tentativa de fingir que o tempo não passou.
Os filmes de Lynch recusam tudo isso. E em meio a essa perda, só nos resta poder agradecer viver uma vida em que eles estiveram presentes. Adeus e muito obrigado.
você mais ou menos descreveu o que eu senti quando o eduardo coutinho morreu, na coisa de que não existe mais a possibilidade de filmes como os que ele fazia continuarem a serem feitos. temos que lidar com o que eles nos deixaram, voltar àquilo que nos toca num lugar esquisito, infamiliar como tu descreve.