não temos combater IAs, temos que combater o trabalho
será que devemos lutar por mais trabalho precário?
Originalmente publicado em https://arquiteturaemnotas.com/2023/11/15/nao-temos-combater-ias-temos-que-combater-o-trabalho/
Se há algo de que tenho profundas dúvidas e ressalvas é de qualquer tipo de tecnodeterminismo. Novas tecnologias aparentemente inescapáveis não necessariamente orientam movimentos sociais futuros nem deveriam ser tomadas como panaceia. Novas (e velhas) tecnologias, afinal, dialogam com teias sociais, econômicas e culturais mais complexas e não há nada exclusivamente nelas que indique que um ou outro caminho será tomado por um dado grupo social. No mercado criativo, contudo, há um tipo de ferramenta tecnológica que veio pra ficar e não há qualquer movimento contrário que possa combater sua difusão: trata-se da geração de imagens por meio da assim chamada “inteligência artificial.” Não tenho dúvidas de que ferramentas como estas estarão incluídas em maior ou menor grau ao fluxo de trabalho de profissionais do mercado criativo nos próximos anos de forma integrada aos aplicativos já utilizados por eles em seu cotidiano, como os do pacote Adobe e similares.
Esta pauta tem sido recorrente nos últimos anos, mas o recente episódio de desclassificação em função de uso de IA de um dos finalistas do Prêmio Jabuti na categoria Ilustração reanimou a discussão.
1. todos usaremos IA, queiramos ou não
Não importa quão intensa seja a (justa) mobilização de ilustradores, designers e outros profissionais afins contra a utilização de plataformas como Midjourney ou Dall-e: a ampla generalização de seu uso ocorrerá em função de sua integração aos aplicativos de criação, como o Illustrator, Photoshop ou o inDesign (algo já em implementação, aliás) o que fará com que a exceção seja não utilizar IA em trabalhos do mercado criativo, não o contrário. Mais uma vez: no mercado criativo capitalista, isto não só não tem volta como necessariamente levará a um processo ainda maior de precarização desses trabalhadores. Mas por maior que seja a gritaria contrária ou a mobilização contra a IA, não há o que fazer numa perspectiva reformista ou conciliatória: não tem volta.
Isto não significa que ilustradores, designers e outros profissionais estejam errados em apontar os problemas em torno da exploração de seu trabalho não pago por meio da apropriação de suas criações pelos bancos de dados que alimentam as ferramentas de geração de imagens por IA. O problema, contudo, é a mobilização de argumentos rasos e problemáticos.
2. dane-se a arte
Ainda há quem alegue que antes das questões de precarização do trabalho presentes nas ferramentas de IA, haveria ainda um problema de base: estas imagens supostamente não poderiam ser consideradas “arte”, já que não teriam sido criadas diretamente por seres humanos.
Existem muitos motivos válidos para criticar o uso de IAs, mas este definitivamente é o pior deles por dois motivos simples, entre outros: o primeiro é que o mundo da arte já superou essa questão há pelo menos um século. O segundo é que simplesmente não estamos falando de arte: ilustradores e demais profissionais criativos insistem em chamar o que produzem de “arte” ainda que o mundo da arte (e sobretudo o mercado da arte) já tenha há muito tempo (ao menos meio século) se deslocado para fora da esfera do mercado criativo no qual eles atuam, ainda que limites possam ser borrados e cruzados.
Ao vincularem o estatuto de arte necessariamente à mão de um gênio criador individual, esses profissionais criativos insistem numa definição romântica e há muito superada do que seja “artista” que mais atrapalha que ajuda. Do dadaísmo à pop arte, da arte generativa a tudo o que está associado à arte conceitual: noções de autoria, delegação de produção, apropriação de imagens alheia, remixagem, bricolagem e colagem vem sendo operadas das mais variadas formas ao longo dos últimos 100 anos de modo que o tema já se tornou até mesmo ultrapassado.
Roy Lichtenstein tomava ilustrações do mundo publicitário e de histórias em quadrinhos como ready-mades para suas pinturas. Nelson Leirner sempre mobilizou imagens da cultura pop em suas instalações e já debochava das idiossincrasias do mundo da arte nos anos 1960 ao submeter seu famoso porco empalhado para um salão de arte moderna, questionando depois publicamente o motivo pelo qual os curadores aceitaram tal deboche. É célebre a obra Erased De Kooning, de Robert Rauschenberg, caracterizada pelo apagamento, por parte deste, de um desenho produzido para ele por De Kooning.
Questionar o uso de IA porque ela supostamente significa a ausência de autoria individual ou por ser criação não-humana, portanto, é simplesmente desconhecer os últimos cem anos de história da arte e se revela, em última instância, infrutífero, porque de fato não é de arte que estamos falando, mas de trabalho criativo em sentido amplo.
3. devíamos lutar pelo fim do trabalho, não pelo direito de trabalhar
Não nos esqueçamos: propriedade intelectual é ficção capitalista.A defesa da propriedade intelectual é em última instância a defesa de um sistema inerentemente violento e opressor. Não deveríamos lutar pela defesa da propriedade intelectual de quem quer que seja, mas, ao contrário:
num primeiro momento, deveríamos lutar em primeiro lugar contra a exploração não paga de renda e mais-valia de nossas criações intelectuais, não de sua apropriação e remixagem. Isso significa exigir a abertura dos algoritmos por trás dos sistemas de IA, a proibição de comercialização de software com código fechado, a transparência dos bancos de dados utilizados e a possibilidade de que qualquer indivíduo possa retirar suas criações desses bancos de dados — avançando, assim, as discussões já iniciadas em torno de marcos normativos como a Lei geral de proteção de dados no Brasil ou a GDPR europeia.
numa perspectiva mais ampla, devíamos pautar não o direito de trabalhar com o mercado criativo num mundo pós-IA, mas o direito de não trabalhar. Devíamos parar de pautar o trabalho e começar a pautar o ócio, a preguiça, o lazer. Se há automatização, então há possibilidade de reduzir o trabalho ao mínimo numa perspectiva de superação da miséria capitalista. Em vez de mendigarmos posições precarizadas e humilhantes no mercado criativo, devíamos pensar em como destruir esse mercado e poder viver sem trabalhar, nos dedicando a atividades mais interessantes — como desenhar, ilustrar, fazer arte, etc. Afinal, não é disso tudo que se trata?
De resto, há muito ainda a ser dito sobre como hackear tecnologias de produção de imagens por IA segundo perspectivas emancipatórias como aquelas expressas já há quarenta anos no Manifesto ciborgue de Donna Haraway, entre outros textos. Não é negando por princípio a IA que faremos isso, como quer a turba acrítica das redes sociais. É nos reconhecendo ciborgues e nos apropriando das próteses que o sistema nos impõe que podemos pensar em novas ficções e em novos futuros.
Ótimo texto! Mudou minha visão sobre como questionar esses últimos acontecimentos do uso de IAs.