marcel gautherot fotografando uma aula de desenho em brasília
Publicado em https://arquiteturaemnotas.com/2023/02/05/marcel-gautherot-fotografando-uma-aula-de-desenho-em-brasilia/
A obra de Marcel Gautherot em Brasília já foi amplamente estudada, sobretudo por pesquisadoras como Heliana Angotti-Salgueiro e Heloísa Espada, cujos trabalhos são fundamentais para entender o fotógrafo e sua produção. Mais recentemente temos visto trabalhos explorando aspectos interessantes e particulares de sua produção na cidade, como a dissertação de Luciana Navarro sobre a Brasília “envergonhada” registrada em uma parcela considerável das imagens produzidas por Gautherot na capital, nas quais se explicitam a miséria, a desigualdade e as contradições inescapáveis de uma cidade ainda em construção.
Entre todas essas imagens já bastante estudadas e revisitadas, há um conjunto em particular que sempre me chama a atenção. Trata-se do registro de uma aula de desenho realizada ao ar livre no então ainda incipiente campus da Universidade de Brasília — um sítio em que se mesclavam canteiros de obras com suas tradicionais fisionomias de terra arrasada e áreas com aparência mais caricata de cerrado ou de mata nativa, com suas árvores de troncos contorcidos e vegetação rasteira, bem como por edificações ainda inacabadas ou provisórias.
As fotografias, produzidas em 1961 ou 1962, podem ser vistas no acervo digital do Instituto Moreira Salles. Como é usual em Gautherot, os enquadramentos são sempre perfeitos, explorando geometrias compositivas criativas e rigorosas. O céu, como sempre, é um degradê cinza lindo.
colonização e utopia
Para além dessas conhecidas qualidades fotográficas das imagens de Gautherot, porém, o que me atrai nessas fotografias são suas ambiguidades e contradições — muito análogas às contradições reconhecidas na própria construção de Brasília.
Os estudantes reúnem-se como se em uma expedição colonizadora numa terra a ser conquistada. Registram atentamente os aspectos de fisionomia da vegetação e as características e detalhes da paisagem. Sabemos, é evidente, que para muitos desses estudantes o interesse imediato era o de exercitar o traço e o olhar, independente do objeto representado. Contudo, o efeito que as imagens de Gautherot passa é mesmo o de um grupo de pessoas aparentemente pouco habituada ao lugar acomodando-se para explorá-lo e conquistá-lo: suas roupas soam estranhas ao ambiente, seus gestos são os de quem acaba de chegar e de se acomodar, seus equipamentos parecem estrangeiros. O grupo é composto exclusivamente por pessoas brancas, em sua maioria homens, prováveis filhos da elites do funcionalismo público que havia se instalado na cidade. É, afinal, uma imagem quase caricata da conquista violenta do sertão do país pelo colonizador europeu.
Em outra imagem — esta já bastante reproduzida — um estudante se equilibra confortavelmente em um galho de árvore oportunamente apropriado a se tornar uma espécie de assento privilegiado para contemplar a paisagem. A composição, como sempre, é perfeita, posicionando cada elemento da imagem em posições estratégicas no quadro. A vegetação, o galho, a perna do estudante e as folhas constituem uma linha de força que coincide com a diagonal que divide o quadro da fotografia em dois. A imagem é quase romântica: insere-se na tradição das pinturas de paisagem do Romantismo em que solitários heróis posicionam-se em meio a uma paisagem selvagem.
Se, por um lado, as imagens reiteram o aspecto colonizante de toda a iniciativa de construção da nova capital — carregando consigo todas as contradições inerentes a um país desigual tão abalado pela herança da escravidão — por outro, há algo de ingênuo nelas que reitera o desejo de construção de uma utopia no meio do sertão. Afinal, tratam-se dos primeiros anos da UnB e de seu arrojado projeto renovado de ensino superior desenvolvido por Darcy Ribeiro e interrompido violentamente pela ditadura civil-militar.
Eram também os primeiros anos de Brasília. Em que pesem suas inescapáveis contradições sociais, políticas e ambientais, ainda nos fascina essa absurda aventura pela qual se construiu em poucos anos o símbolo de uma nova república no meio do sertão.
o que resta após o dia 8 de janeiro?
Após os absurdos eventos do dia 8 de janeiro de 2023, quando uma massa de fascistas atacara violentamente os símbolos dessa frágil e fraturada república, cabe voltar a esse momento mítico de sua (re)fundação nos anos 1950 e 1960. As contradições são ainda explícitas, é claro: até hoje não enfrentamos a violência da herança da escravidão e do massacre dos povos indígenas. O sonho de uma utopia republicana no meio do sertão sempre excluiu pessoas negras, indígenas, candangos, pobres. Contudo, os fascistas do dia 8 de janeiro não se sentiram representados sequer pelos símbolos dessa república fraturada que sempre os beneficiara — tratando-se, afinal, de uma ação orquestrada por grupos brancos e ricos. Brasília revelou-se falha até mesmo aos grupos que sempre foram beneficiados pelo projeto de utopia liberal que ela representa.
Há quem possa argumentar que a branquitude colonizadora capturada pelas lentes de Gautherot já pudesse antecipar lá nos anos 1960 a tragédia fascista que vimos em janeiro. Difícil argumentar contrariamente.
Por outro lado, podemos extrair dessas imagens o desejo sincero de construção de uma utopia no meio do território nacional reiterando a necessidade de enfrentar definitivamente o impacto da escravidão, dos crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura civil-militar e pelos anos de Bolsonaro e do sistemático genocídio das populações indígenas, negras, pobres e periféricas no país. Dessa vez, sem anistia para torturadores, genocidas e perpetradores desses e de outros crimes contra a humanidade.
Afinal, em 1º de janeiro de 2023 pessoas sistematicamente excluídas dessa república falha subiram a rampa do Palácio do Planalto pela primeira vez desde a criação de Brasília. Apesar de tudo, vencemos o fascismo e vamos reconstruir esse país.