Publicado originalmente em arquiteturaemnotas.com
Ocorreram na última semana, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, a Assembleia Geral e o Encontro Científico do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios — o Icomos —, órgão de apoio à Unesco para as questões ligadas ao universo do patrimônio cultural. Tive a oportunidade de participar do Encontro Científico, sobre o qual teço breves comentários.
é hora de aposentar a carta de veneza
O evento teve como mote a proposta de revisitar a Carta de Veneza, documento redigido em 1964 e considerado no mundo ocidental como basilar para o campo da conservação e do restauro de uma pequena parcela de bens culturais arquitetônicos — no caso, o dos “monumentos históricos”. Embora trate-se de documento cujo conteúdo e proposta sejam particularmente circunscritos a uma parte do norte global, até hoje a Carta de Veneza é apresentada e tomada como espécie de “Constituição” — como espécie de lei básica universal — para as práticas patrimoniais de uma forma geral. Amparada em noções bastante problemáticas e próprias do pensamento ocidental e moderno — como “autenticidade”, “integridade”, bem como uma noção linear e ainda bastante positivista de tempo histórico — a Carta completa 60 anos ainda em posição de destaque na construção de marcos doutrinários e formativos para o campo do patrimônio, sendo inclusive apresentada com pretensões universalizantes.
Ainda que a basilar e problemática noção de “autenticidade” adotada pela Carta tenha sido já relativizada — ainda que de forma bastante tímida e limitada — pelos debates promovidos pela Conferência de Nara, em 1994, o protagonismo da Carta de Veneza permanece inabalável no mundo ocidental. O grande problema, grosso modo, é: não só a noção de tempo linear do mundo ocidental não é totalmente compatível com contextos alheios aos do Norte global (e mesmo no interior de países deste Norte, como é o caso do Japão ou da Austrália), como noções como “autenticidade” simplesmente não fazem sentido para práticas patrimoniais do mundo não ocidental. Trata-se já de pauta antiga, mas sistematicamente bloqueada nos debates internacionais hegemônicos.
Os organizadores da edição de 2024 do encontro do Icomos, portanto, foram bastante hábeis e felizes em propor o necessário debate em torno da eventual superação da Carta de Veneza, sem medo de desafiar dogmas e posições hegemônicas por parte dos países-membros do Icomos provenientes do Norte global. Pesquisadores e profissionais como Laurajane Smith (australiana), George Abungu (queniano) e Krishna Menon (indiano) apontaram em suas conferências como uma carta circunscrita ao mundo europeu do pós-Guerra vem sendo sistematicamente tomada como instrumento de imposição de violências epistemológicas e de dogmas profissionais numa lógica em nada diversa à das práticas coloniais.
Para além de suas virtudes, a Carta de Veneza hoje é inegavelmente repleta de vícios em sua apropriação e mobilização: aponta para uma concepção tecnocrática, ocidental e limitadamente moderna de patrimônio. Parece-me que ela colabora para a sedimentação das questões patrimoniais como uma “questão de fato” e não como “questão de interesse”, para usar as célebres expressões de Bruno Latour.
reacionários venezianos
O que mais me marcou ao longo dos dias de evento foi a reação ora inflamada e incisiva, ora debochada, preconceituosa e deseducada por parte daqueles que ainda tomam a Carta de Veneza como documento basilar. Recusavam-se a aplaudir os conferencistas, faziam caras feias, não simulavam o desejo de censurar esta discussão — isso quando não faziam explicitamente comentários racistas e violentos contra a origem daqueles que simplesmente apontavam o óbvio sobre a necessidade de superar o suposto universalismo daqueles preceitos tecnocráticos e problemáticos da Carta de Veneza.
Pode-se até argumentar que debates como esse não devam ser resumidos a uma espécie de “Fla×Flu” programático ou ideológico. Contudo, a impressão que fica é que justamente quem quer tratar a discussão em termos polarizantes e redutores são justamente os defensores incondicionais da Carta de Veneza — que insistem em não reconhecer seu alcance relativo e restrito ao mundo franco-italiano.
por um patrimônio dialógico, multivocal e tenso
Os debates promovidos ao longo dos dias apontam inequivocamente para a necessidade de repensar o protagonismo inabalável da Carta de Veneza e de todo o marco normativo e doutrinário construído em torno dela nos últimos sessenta anos. Avançamos (ao menos nos contextos locais, embora ainda não no Patrimônio da Humanidade da Unesco) já muito na esfera da identificação, inventariação e reconhecimento de outros patrimônios que não aqueles associados à retórica de Veneza. As práticas de conservação e restauração, contudo, permanecem limitadas àquela retórica franco-italiana de sempre para a qual a Carta de Veneza é elemento central. Precisamos pensar outras teorias da conservação para além das franco-italianas, outras ciências da conservação numa perspectiva abrangente, democrática, plural, multivocal.
Menos Cesare Brandi, mais Paulo Freire.
Menos autenticidade e integridade, mais tensão e dialogicidade.