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Visitei apenas uma vez o famoso Pavilhão da Alemanha para a Feira Mundial de 1929 em Barcelona, no início de 2020 — poucos meses antes da pandemia chegar e nos fazer ficar em casa pelos próximos dois ou três anos. Rigorosamente, aliás, não visitei o verdadeiro Pavilhão, mas sua réplica em escala 1:1 construída exatamente no mesmo local do antigo edifício, já que o original foi demolido em 1930.
Obra máxima de Mies van der Rohe — arquiteto que teria completado 139 anos na última quinta-feira, 27 de março — trata-se de um desses destinos turísticos inescapáveis nas listas de lugares para se visitar antes de morrer por parte de qualquer entusiasta da arquitetura moderna. Parece-me, aliás, que desenvolvemos com locais canônicos como o Pavilhão uma relação de consumo problemática, em nada diferente daquela presente no turismo de massas em destinos como o Disney World ou coisas semelhantes — não por acaso foi na mesma viagem que também visitei pela primeira vez a Villa Savoye, localizada nos subúrbios de Paris. Essa relação fica ainda mais evidente quando levamos em conta o quão problemáticas — para dizer o mínimo — foram figuras como van der Rohe ou Corbusier e o quanto a nossa relação com esses lugares não se dá pela via de uma análise crítica distanciada, mas de um contato inescapavelmente afetivo com essas imagens que permearam nossa formação. Fazemos parte de uma espécie de “fandom” desses nomes célebres da arquitetura moderna.
Tal é essa relação passional com esses edifícios que fatalmente somos atraídos às inevitáveis lojinhas anexas a esses espaços musealizados. E foi na lojinha do Pavilhão que comprei esse delicioso imã de geladeira com a frase “Desenhe, não fale”, supostamente atribuída a Mies van der Rohe.
construa, não fale
A frase atribuída a Mies, de fato, é “Construa, não fale” — trata-se de uma dessas frases de efeito que ele cultivava na construção de sua persona pública, junto da mais infame e conhecida “Menos é mais.”
Mies, sabemos, é uma figura repleta de contradições. Sua relação com o regime nazista (do qual ele fugiu em 1938, às vésperas da guerra) é controversa, tendo sido já retratado tanto como um colaborador quanto como uma vítima. Independente disso, sempre foi retratado como uma figura autoritária — suas ideias já teriam traços fascistoides independente de sua eventual colaboração com o nazismo.

O desenho acima, atualmente no acervo do MoMA, constitui-se de uma das imagens mais polêmicas — e escondidas — de toda sua carreira. Trata-se de um esboço para outro pavilhão da Alemanha em uma feira mundial, desta vez a de 1934, em Bruxelas. O volume lembra vagamente o Pavilhão de 1929, embora desta vez aparentemente mais simétrico — em linha com a austeridade nazista — e desprovido do jogo de planos e volumes da obra de 1929. O que mais chama a atenção no croquis, contudo, é uma certa insegurança na definição do traço dos signos explicitamente alusivos ao regime nazista — quase como se eles estivessem ali a contragosto, seja a águia mal desenhada no eixo da fachada, sejam as bandeiras com a suástica apenas sugerida e de definição trêmula. O mesmo Mies, afinal, tinha sido oito anos antes o autor do Monumento a Rosa Luxemburgo e a Karl Liebknecht, encomendado pelo Partido Comunista.
Longe aqui de querer fazer qualquer papel de advogado do diabo (até porque meu interesse pelo assunto é superficial e não tenho autoridade acadêmica nenhuma sobre ele), mas seria talvez este desenho a expressão desesperada de alguém que se viu obrigado a aderir ao pesadelo nazista? Sugerir isto, por outro lado, talvez seja generoso demais da nossa parte, dados outros episódios de colaboração mais explícita do arquiteto com o regime — como aponta um já clássico texto de Celina Welch, de 1993.
o desenho e o não-dito
A frase semi-apócrifa “Desenhe, não fale” pode ser lida de diferentes maneiras. De um lado, num certo contexto, ela é uma espécie de “cala boca” arquitetônico: uma forma de sugerir que alguém deve se privar de expressar qualquer opinião que seja a não ser pelos meios adequados. Trata-se de posicionamento alinhado a uma certa desconfiança por parte de certas figuras do modernismo com o universo da palavra: se a linguagem dos arquitetos é o espaço, toda tentativa de sua verbalização seria infrutífera, não havendo possibilidade de crítica a uma arquitetura se não por meio de outra arquitetura — mas nunca por meio da palavra. Tal interpretação certamente se alinha fortemente aos traços fascistoides de Mies. Diferente de Corbusier, aliás, Mies é figura refratária à palavra escrita: enquanto o primeiro escrevia dez livros para cada projeto realizado, Mies praticamente privou-se de publicar mesmo pequenos textos ou ensaios ao longo de toda carreira.
Por outro lado, caso seja possível relevar todo o contexto condenável de Mies, há algo de interessante nesta frase: o desenho, pela sua própria natureza, pela expressividade de seu traço ora mais assertivo, ora mais inseguro, permite lidar com o não-dito, com o meramente sugerido, com o sutil, com o não-literal. Permite apontar dúvidas tanto quanto certezas. E, mais do que tudo, permite explorar possibilidades de uma maneira não-linear, explorando contradições num mesmo espaço-tempo e tornando visível aquilo que permanece silencioso. Nesse ponto, o imperativo “desenhe, não fale”, talvez seja, surpreendentemente, libertador.
Muito bom!