Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
Um dos mais belos projetos de Burle Marx na capital federal — talvez só não mais célebre que a composição de interiores e exteriores no Itamaraty — é o conjunto paisagístico daquela que ficou conhecida como “Praça dos Cristais”. Localizada no Setor Militar Urbano em frente ao Quartel-General do Exército, a Praça dos Cristais é desde sua inauguração em 1970 um cartão-postal recorrente para a cidade, bem como local privilegiado para realizar ensaios fotográficos, piqueniques e atividades afins. Antes um enorme jardim que propriamente uma praça — já que ela se encontra em meio aos descampados usuais brasilienses — o conjunto apresenta variados recursos paisagísticos: áreas sombreadas, gramadas e pavimentadas com os desenhos de piso típicos da obra de Burle Marx, bem como espelhos d’água caracterizados por volumes escultóricos prismáticos que, pela semelhança com cristais, são a principal marca do local.
A história de tão agradável praça, contudo, ficará para sempre manchada por ter sido nela que se concentrou, durante meses, a falange fascista que tentaria derrubar a democracia brasileira em 8 de janeiro de 2023, em patético e lamentável ataque às sedes dos poderes da República. Falei já sobre o episódio — e sua relação com a formação da cidade de Brasília — em um artigo para a Revista Recorte.
uma praça fora do tempo
Não sendo morador de Brasília — e na condição de visitante eventual — tive apenas recentemente a oportunidade de voltar a visitar a Praça desde que ela havia sido contaminada pela presença daquela gente asquerosa. O impacto de voltar ao local é duplo: de um lado, ficamos satisfeitos em ver que por mais asquerosos e agressivos que tenham sido os golpistas que ali acamparam por meses, o local permanece agradável e íntegro.
Por outro lado, contudo, causa certo desconforto justamente a ausência de qualquer signo desse evento tão desagradável. É como se nada tivesse acontecido, como se aquele enorme jardim permanecesse fora do tempo e do espaço, impassível diante da marcha da história. Não há marcas das barracas, não há sinal da presença dos golpistas ou qualquer traço de que naquele local gestou-se uma tentativa de derrubar a República e destruir o voto popular.
A integridade do lugar, é claro, não é resultado do zelo nem dos fascistas que o ocuparam de forma violenta durante os meses finais de 2022 — já que, afinal, trata-se de gente bastante dedicada, como vimos pela televisão e pelas redes sociais, a destruir tudo o que se associasse à democracia e à república — nem, provavelmente, de seus guardiões institucionais. Com efeito, pode-se argumentar que foi a ação do Exército que teria restaurado o lugar à sua condição íntegra após a retirada das barracas e desocupação. Contudo, ao contrário, foi justamente a omissão dos responsáveis pela manutenção da Praça que permitiu que os fascistas mantivessem por meses a ocupação.
conservando praças e pactos conciliatórios
De fato, basta caminhar por poucos minutos pela Praça para cruzarmos com um soldado do exército fazendo sua ronda — motivo, aliás, pelo qual praticamente não se vê nenhum vendedor ambulante ou figura similar em seu cotidiano. No primeiro momento em que alguém ousasse instalar uma barraca no local, mesmo que improvisada, os vigias fatalmente impediriam a empreitada — o que não só não ocorreu, como se deu, aparentemente, com participação de militares.
Nesse sentido, a ausência de sinais da ocupação talvez interesse à velha política conciliatória que caracteriza a relação da frágil democracia brasileira com os militares: esquece-se do passado em nome de uma instável e ilusória pacificação para o futuro, como se nada tivesse acontecido. Até que, é claro, sejamos novamente surpreendidos por nova tentativa de golpe.