Originalmente publicado aqui: https://arquiteturaemnotas.com/2023/03/25/cercas-vivas-no-plano-piloto/
Existem muitas razões para criticar o tombamento da área relativa ao Plano Piloto em Brasília: pode-se alegar que o tombamento, ainda que preserve as virtudes da cidade, contribui para o engessamento de seus muitos e conhecidos vícios, como a dependência do automóvel, os espaços públicos indiferenciados, os longos percursos, as áreas monofuncionais, etc. Além disso, a área do Plano Piloto é palco de processos graves de segregação: apenas cerca de 15% da população do Distrito Federal tem condições de morar nesta região, o que a caracteriza como área exclusivíssima similar a bairros como Higienópolis ou Leblon. Ainda que o tombamento não interfira diretamente nos processos de desenvolvimento desigual das cidades brasileiras, é difícil negar que neste caso ele ajude a consolidar tal quadro de exclusão espacial — que faz com que a maior parte da classe trabalhadora seja obrigada a viver nas mais distantes regiões administrativas do DF (popularmente conhecidas como “cidades-satélites”, ainda que elas se constituam de fato no cotidiano urbano mais significativo de Brasília).
A segregação sócio-espacial do Distrito Federal fica bastante evidente neste mapa de distribuição racial: a área do Plano Piloto é predominantemente branca, diferente das demais regiões administrativas.
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Apesar disso, há pelo menos um efeito do tombamento (e da própria gestão fiscalizatória da cidade, para além disso) que permanece virtuoso e passível de celebração: trata-se do disciplinamento da ocupação das superquadras que impede que os pavimentos térreos dos blocos habitacionais sejam fechados ou cercados. Princípio fundamental da proposta de Lucio Costa para as superquadras, a permeabilidade dos edifícios habitacionais — assim como das próprias superquadras em que eles se encontram, impedindo a formação de condomínios fechados — é daqueles poucos traços de utopia que ainda permanecem vivos no cotidiano da cidade. Apesar de se tratar de uma cidade bastante agressiva para o pedestre, tal permeabilidade permite que um caminhante percorra longitudinalmente todas as superquadras de uma das asas da cidade sem grandes interrupções. A “cidade parque” evocada por Lucio Costa efetivamente se realiza na experiência das superquadras desimpedidas de atravessamento. A materialização de tal permeabilidade se dá, justamente, pela ausência de muros, cercas e paredes nos pavimentos-pilotis.
táticas de cercamento
Apesar das normas que proíbem o cercamento dos pilotis e das superquadras, são muitas as táticas das elites locais moradoras das superquadras para tornar ainda mais exclusivo seu lugar de vida. De disputas judiciais a instalação de sistemas de segurança e monitoramento, tais táticas apontam para uma tensão permanente na ocupação e na vida da cidade.
Uma das táticas mais usuais de cercamento é o uso da vegetação e de um paisagismo “autoconstruído” — caracterizado sobretudo pela adoção de cercas vivas de buxinhos e arbustos similares. Em alguns casos essas cercas-vivas escondem (ou mal escondem, desavergonhadamente) cercas efetivas de madeira e arame.
Se o princípio da permeabilidade das superquadras aponta para uma cidade no qual o espaço público — ainda que com gradações de escala, como previa o plano de Costa — encontra-se aberto para todas as pessoas (incluídos aí os térreos dos edifícios), essa espécie de “paisagismo anti-andarilhos” se revela uma prática bastante eficaz de disciplinamento do uso do espaço urbano, impedindo atravessamentos de edifícios e implantando de fato alguns caminhos possíveis para os pedestres. Contra o disciplinamento sóbrio e desumano do urbanismo funcionalista surge um disciplinamento com possíveis valores privatistas e exclusivistas.
![Bloco de superquadra emoldurado por vegetação que dificulta a passagem.](https://substackcdn.com/image/fetch/w_474,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fsubstack-post-media.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2F9a095f6d-8428-4571-a363-53daf63d5dfb_3024x3024.jpeg)
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Pode-se sempre, é claro, argumentar que tais cercamentos se tratam de uma forma interessante de apropriação e transformação do lugar por parte dos moradores — afinal, numa cidade tão árida quanto Brasília, tais arranjos de vegetação podem vir a se constituir de verdadeiros “jardins de objetos.” Não nego tal possibilidade. Contudo, é muito provável que ambas as abordagens — a da aporofobia e a dos afetos particulares — se interpenetrem e até mesmo se confundam.