caetaneando o evangelistão
seria “deus cuida de mim” um ready-made tropicalista no século 21?
Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com — aproveite e visite!
Assistimos recentemente ao celebrado concerto de Caetano Veloso e Maria Bethânia, cuja turnê se deu ao longo de 2024 e terminou com apresentações em São Paulo, neste mês de dezembro. O show — maravilhoso — estava lotado.
Caetano e Bethânia estão entre os melhores daquela que talvez tenha sido a melhor geração que a cultura brasileira já produzira: é sempre um privilégio poder compartilhar mesmo que por alguns breves momentos da beleza de suas vozes, composições e performances. É música que faz, sem dúvida, fazer a vida valer a pena.
aceno ao evangelistão?
No meio do espetáculo, como já se esperava, Caetano cantou “Deus cuida de mim”, canção do pastor evangélico Kleber Lucas, após fazer um breve comentário a respeito de como ele enxerga com fascínio o crescimento do que chama de “evangelismo” no país. Trata-se do momento mais polêmico de todo o show, já bastante comentado na imprensa e fartamente discutido nas redes sociais.
Há quem diga se tratar de um aceno oportunista a um potencial público cada vez maior e mais significativo, num momento em que a audiência cativa do cantor e compositor supostamente tenderia a se reduzir — o que parece não fazer sentido, dado que as apresentações da turnê esgotaram rapidamente. Há quem considere uma “brincadeira” irresponsável por parte do músico, já que o país vive a constante ameaça de interferência do moralismo evangélico na política nacional, contribuindo para a redução de direitos e à repressão a modos de vida considerados desviantes dos padrões normativos — o que também faz pouco sentido quando lembramos que tratava-se da única canção com qualquer maior apelo cristão em meio a todo aquele lindo repertório repleto de referências explícitas às religiões de matriz africana, algo provavelmente condenável aos evangélicos mais fundamentalistas.
Independente do motivo, a presença da canção bem no meio da apresentação causou para muitos (mas não para todos) desconforto e polêmica. Caetano mesmo, ao ser perguntado pela imprensa sobre o motivo da inclusão da canção em seu repertório, teria respondido simplesmente com aquela certa excentricidade sincera que lhe é característica que “Foi Deus” (“Fui criado em uma família católica com uma visão religiosa das coisas, mas depois me afastei muito. Você sabe, Kleber, que eu cheguei a ser assim antirreligioso. Na minha juventude, eu era antirreligioso, mas agora a única resposta que veio a minha cabeça da sua pergunta é ‘foi Deus’”, conforme matéria na Folha de S. Paulo)
Não que eu tenha qualquer autoridade sobre o assunto ou sobre o personagem, mas prefiro interpretar o episódio de outra maneira, a partir de uma perspectiva mais positiva e menos inquisitorial — e talvez até ingênua, reconheço.
Gosto de pensar que “Deus cuida de mim” talvez seja o momento mais tropicalista deste show.
ou ready-made tropicalista?
O projeto tropicalista, entre outros elementos (por vezes até contraditórios), caracterizava-se pela incorporação a suas obras de elementos e fragmentos da indústria da cultura de massas, articulando cultura popular, cultura de massas e cultura erudita rompendo ou borrando os limites entre esses universos. Ao incorporar nos anos 1960 o imaginário associado a coisas como Chacrinha, Jovem Guarda, iê-iê-iê, Coca-Cola, capas de revista, entre outras coisas, procedia-se a um diálogo poético bastante intenso com o tempo presente e suas contradições. Esses elementos por vezes eram incorporados como pastiche, bricolagem ou mesmo ready-mades: a graça estava justamente no deslocamento de seus contextos de origem e sua incorporação a situações inusitadas, como quando imagens ligadas à cultura de massas eram integradas a arranjos produzidos por compositores eruditos. E, como em qualquer ready-made, o deslocamento gera ao mesmo tempo incômodo mas também uma certa graça.
Acontece que esse deslocamento e essa incorporação nunca se caracterizaram como mero deboche nem se tratava de uma forma de desprezo. Tratava-se da incorporação de elementos pelos quais havia admiração sincera, mesmo que caracterizada por toda a blague que é própria dessa operação estética. Caetano, Gil e companhia sempre declararam que nunca foi seu desejo destruir a cultura de massas: ao contrário, integravam-se a esta indústria plenamente.
Quando nos anos 1990 e 2000 o mesmo Caetano Veloso interpreta obras associadas ao cancioneiro brega e popularesco (como os sucessos “Sozinho” e “Você não me ensinou a te esquecer”) talvez ocorra o mesmo movimento, agora renovado.
Se avançarmos para os anos 2020, talvez não exista indústria de cultura de massas mais potente que aquela ligada ao evangelismo. Gostemos ou não (e eu confesso que não gosto disso nem um pouco), é aí que se encontram as estéticas populares cotidianamente performadas por milhões de pessoas. Não por acaso, Caetano introduziu a polêmica canção “Deus cuida de mim” justamente no mesmo bloco de “Sozinho” e “Você não me ensinou a te esquecer” — canções que também foram objeto de polêmica por parte de críticos quando foram gravadas por ele, também associadas a acusações de “oportunismo” midiático e comercial.
Talvez “Deus cuida de mim” seja em 2024 o mais potente (e incômodo) ready-made tropicalista deste veterano eterno jovem contestador que é Caetano — sem qualquer deboche ou desprezo, mas manifestando uma admiração sincera, como igualmente ocorria com os elementos da indústria da cultura de massas nos tempos da contracultura.
vocês não estão entendendo nada, absolutamente nada
Seria tudo isso um exagero de minha parte? Não sei. Na hora da execução de “Deus cuida de mim” aproveitei pra ir ao banheiro e não pude avaliar com o devido cuidado seja os detalhes da interpretação da canção, seja a reação da plateia.
Vi, contudo, uma cena curiosa. Nos corredores atrás das arquibancadas, no caminho para os banheiros, cruzei com os funcionários que trabalhavam durante o show no apoio às vendas de bebidas e lanches. Alheios à maior parte do repertório, neste momento alguns desses trabalhadores (e, sobretudo, trabalhadoras — mulheres em sua maioria) permitiam-se curtir e cantarolar a canção.
O que isto significa? Não sei, talvez nada. Com “Deus cuida de mim” mais uma vez Caetano nos alerta de que não estamos entendendo nada, absolutamente nada.
o final mostra que você entendeu tudo, talvez não absolutamente tudo. mt bom o texto!
Achei essa interpretação bem interessante, embora ainda ache que tudo não passa do medo da morte - já vi ateu virar crente por não saber o que vem por aí. E acima de tudo, uma música chatíssima, independentemente da religião.