Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com. Visite!
O colega Elvis Rodrigues, em uma recente edição de sua newsletter Na toca do lobo, comentou sobre sua relação com Brasília, cidade na qual vive já há vários anos. Inaugurada no dia 21 de abril de 1960, a capital do país acaba de completar oficialmente 65 anos de vida. Aproveito a efeméride para surrupiar de Elvis o tema e para também tecer algumas palavras sobre minha relação com a cidade.
Trata-se, no entanto, de uma relação estranha, para dizer o mínimo, já que nunca vivi naquela cidade e nem mesmo a visitei muitas vezes: acredito que estive lá menos de dez vezes e nunca por mais do que uma semana. Apesar de poucas, foram sempre bastante significativas, seja pelos encontros que tais visitas propiciaram, seja pela possibilidade de experimentar ao vivo certas realidades arquitetônicas e urbanísticas com as quais, talvez desde a adolescência, vinha entrando em contato exclusivamente pela mediação de publicações e outras formas de representar a cidade.
De fato, como diz o historiador Adrian Gorelik, Brasília é uma espécie de museu a céu aberto da modernidade, museu de si mesma e de seus próprios mitos — e visitá-la envolve sempre uma relação com as representações dela própria com as quais nos acostumamos a lidar ao longo dos anos em livros, revistas, fotografias e filmes. Não importa quantas vezes a visitemos, a relação com o espetáculo permanece.
um espetáculo (surrealista)?
Tal é o impacto do espetáculo que talvez ele até ajude a nos fazer esquecer (ou a naturalizar) tudo o que há de inusual, estranho ou mesmo desagradável nesta cidade. Lugar onde tudo parece perto mas o perto é sempre longe, Brasília — ou ao menos a região de seu Plano Piloto — é uma miragem perene, espaço da representação de si mesma que não cessa de nos fascinar mesmo escancarando suas contradições, limites e violências. O olhar se perde naquele amplo horizonte e todo aquele espetáculo nos fascina. Há algo de um misto de sublime e pitoresco na estranheza de Brasília.
Para abusar do clichê: “Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína.”
Muito do que penso sobre a cidade encontra-se neste texto que escrevi para a revista Recorte, no qual discuto a relação da cidade, sua arquitetura e urbanismo com os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Naquele texto, contudo, eu talvez tenha sido por demais pessimista com a cidade: há sem dúvida uma experiência estética em estar naquela cidade que talvez não seja reproduzível em qualquer outro lugar — e não me refiro àquela gramática formal modernista diretamente relacionada com a proposta costiana para a cidade.
Em linha com a maneira como a pesquisadora Heloísa Espada discute as famosas fotografias brasilienses de Marcel Gautherot — associando-as com uma leitura muito mais surrealista do que propriamente construtivista da cidade, de seus volumes prismáticos e de suas enormes e solitárias sombras —, acho que há algo de deliciosamente melancólico e infamiliar naquela solidão inescapável em meio aos grandes espaços abertos, à escala opressiva de seus volumes e da sensação de isolamento em meio à amplidão daqueles horizontes.
Mais do que uma ode modernista ao progresso e à construção de um novo mundo e um novo homem, seria Brasília de fato uma grande e irônica instalação surrealista?
Talvez, de fato, quem melhor tenha descrito a cidade tenha sido Clarice Lispector: “A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis.”
A imagem que abre o texto é uma de duas pinturas realizadas por Oscar Niemeyer quando, em Paris, ele recebera notícia do sucesso do golpe que instauraria a partir de 1º de abril de 1964 a ditadura civil-militar que duraria 21 anos. Naquele momento Brasília tinha apenas quatro anos de vida e era imaginada por um de seus autores já como ruína.