Originalmente publicado em https://arquiteturaemnotas.com/2023/01/11/brasilia-1o-de-janeiro-de-2023/
Brasília é uma cidade insuportável e tenho certeza de que muitos são os que concordam com esta afirmação: nesta cidade o perto é sempre longe, embora o longe pareça sempre perto.
Sob seu lindo e ardiloso céu qualquer caminhada se torna uma peregrinação sob o sol ardido e traiçoeiro. Estar desacompanhado de um automóvel nesta cidade talvez seja neste mundo a experiência mais próxima do purgatório. Pagamos nossos pecados com qualquer breve caminhada nesta “capital aérea e rodoviária; cidade parque”, para relembrar as célebres palavras de Lucio Costa revisadas por Carlos Drummond de Andrade a respeito do “sonho arquisecular do Patriarca.”
Para além das dificuldades de locomoção no interior do Plano Piloto, Brasília também é hoje, sabemos, uma realidade urbana bastante desigual, perversa e excludente. Cidade repleta de contradições, trata-se de excelente espelho para um país igualmente perverso e marcado por desigualdade violenta e desumanizante.
um momento de alegria, apesar de tudo
Marcel Gautherot é particularmente conhecido por ter capturado o caráter um tanto quanto surreal, solitário e inquietante dos grandes espaços abertos de Brasília em suas célebres fotografias produzidas ainda durante a construção e sobretudo nos primeiros anos da cidade, conforme nos lembra o trabalho de Heloísa Espada. As fotos de Gautherot revelam longas e solitárias sombras dos transeuntes em meio àqueles estranhos e abstratos volumes construídos por Niemeyer e Lucio Costa. Também é conhecida a crítica de Clarice Lispector à cidade — cidade tão fascinante quanto repulsiva.
É fácil se fascinar pela cidade, mas é difícil gostar de habitá-la, convenhamos.
Em alguns momentos, contudo, todas as contradições tão explícitas em seu cotidiano, toda a violência do sol do cerrado, toda a imensidão monumental e solitária que tanto oprime o pedestre… tudo isso perde o sentido e a cidade revela a potencial alegria para a qual seus amplos e utópicos espaços públicos sempre apontaram.
A posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro de 2023 foi certamente um desses momentos. Numa tarde de verão em que a providência parece ter excepcionalmente suspendido o habitual regime de chuvas pudemos viver, enfim, um momento de alegria — uma tarde na qual os valores democráticos e republicanos supostamente celebrados pelos traços de Niemeyer e Costa revelaram-se plenos de sentido em meio às tantas contradições da cidade.
Uma multidão multicolorida e polifônica celebrou em Brasília no dia 1º de janeiro de 2023 o fim de um ciclo de quatro (ou melhor: seis) anos de pesadelo contínuo e sistemático. Celebramos juntos a vitória sobre o fascismo: vitória contra a milícia, contra o negacionismo, contra o ódio, contra a intolerância.
Pela primeira vez em seis anos tínhamos certeza de que as estruturas do Estado brasileiro passavam a ser geridas segundo princípios democráticos, plurais, republicanos e comprometidos com o pacto social proposto pela Constituição de 1988.
Neste dia aqueles enormes e usualmente melancólicos espaços na Esplanada dos Ministérios foram tomados por alegria, esperança e pelo desejo de reconstruir o país — e por mais que uma semana depois os resquícios nefastos do fascismo tenham se manifestado no mesmo local, sabemos que nossa força é maior.
Vencemos e vamos reconstruir este país.