Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com. Visite!
No início de novembro visitei rapidamente o Cooper-Hewitt, museu de designligado ao Instituto Smithsoniano, num fim de tarde próximo de seu horário de fechamento. Na ocasião, havia sido recentemente aberta a exposição da Trienal de Design promovida pelo museu.
Em vez de um evento voltado à exibição de uma seleção da produção recente em design realizada nos últimos anos (como é usual em bienais ou trienais semelhantes), tratava-se antes de uma proposta de exposição de obras (em grande parte de tipo “site-specific”) encomendadas a designers e artistas que, pela sua natureza, materialidade e concepção, exploram os limites entre arte e design — algumas com resultados mais satisfatórios e outras ficando num limiar meio problemático, não se sustentando nem de um lado nem de outro. Com o tema “Making Home”, o resultado geral, porém, é interessante e sugere comentários e discussões relevantes sobre a relação entre a sociedade estadunidense e sua cultura material, atravessada por questões ligadas ao racismo, à desigualdade, à concentração de poder e renda, à biopolítica e o controle e disciplinamento de corpos, entre outros assuntos. Mais sobre a exposição pode ser lido nessa matéria da revista Wallpaper.
padrões de vida
Pela correria da visita, não foi possível apreciar tudo, mas vale um comentário sobre uma das instalações encomendadas pelos curadores. Trata-se de Patterns of Life, de autoria da jornalista e designer Mona Chalabi e do estúdio SITU.
A instalação aborda o problema do que tem sido chamado de domicídio: a destruição sistemática das estruturas físicas do morar em contextos de conflito militar, massacres, desastres ou até mesmo em processos de desenvolvimento urbano associados a ações de segregação social. Por meio de maquetes de edificações residenciais destruídas recentemente em meio a massacres genocidas como os promovidos pelo exército israelense em Gaza ou em meio a conflitos militares na Síria ou no Iraque, registram-se formas de morar, domesticidades e fragmentos de cotidiano violentamente apagados. Tratam-se de memórias silenciadas e existências a que foram negadas o direito a qualquer tipo de lembrança, seja por meio da permanência de objetos biográficos de seus moradores, seja pela destruição de qualquer traço de vida naqueles territórios.
As maquetes são construídas de forma bastante precisa, registrando a volumetria e os detalhes arquitetônicos das antigas edificações. Trata-se, contudo, de uma representação deliberadamente monótona: a vida do lugar ganha cor por meio de desenhos lúdicos (um tanto quanto intencionalmente infantis, até) presentes em cada um dos apartamentos em que viviam as famílias cujas memórias foram registradas pelos realizadores.


O contraste entre a arquitetura em princípio sem vida dos edifícios e o cotidiano colorido dos lares destruídos talvez esteja longe de se constituir de um tema inédito na reflexão em torno da cultura material e das formas do morar. De Lefebvre a Michel de Certeau muito já se refletiu e já se escreveu a respeito dessas dinâmicas. Na mesma medida, a memória do morar e os universos fascinantes do cotidiano doméstico são também temas já bastante discutidos, tanto na teoria social quanto no mundo das artes. Ainda assim, esta instalação continua se revelando bastante impactante ao explicitar os cotidianos perdidos do morar nos apartamentos iluminados em meio àquelas maquetes aparentemente vazias de sentido e de vida.
A instalação ganha ainda mais impacto (embora um tanto quanto cínico) ao lembrar aos visitantes que os EUA — que financiam a instituição na qual ela está exposta — são talvez os principais responsáveis, direta ou indiretamente, pelos massacres que levaram à destruição dessas vidas e dessas memórias. Esse impacto cínico, por outro lado, ganha novos matizes num momento em que o país que sedia esta instalação-denúncia também promove um massacre sistemático e xenofóbico contra sua população imigrante. Quem acolherá os refugiados desses processos de domicídio?