Originalmente publicado em arquiteturaemnotas.com
São célebres as superquadras de números 107, 108, 307 e 308 localizadas na Asa Sul de Brasília. Em conjunto, elas constituem a famosa “unidade de vizinhança modelo”, cuja configuração deveria servir de exemplo para a ocupação do restante do setor habitacional da cidade quando de sua construção, entre 1957 e 1960 — e mesmo após sua inauguração, posto que na ocasião ainda pouco da Asa Sul encontrava-se pronto e praticamente nada na Asa Norte. O conjunto, posicionado bem na meio da Asa Sul, além dos blocos habitacionais típicos constituídos por pilotis e mais seis pavimentos, é formado por uma escola-parque modelo, escola-classe, creche, biblioteca, clube esportivo, rua comercial entre-quadras e a também célebre igrejinha dedicada a Nossa Senhora de Fátima, posicionada exatamente no ponto central das quatro super-quadras. Imaginava-se que todas as demais unidades de vizinhança da área coberta pelo Plano Piloto de Brasília reuniriam todos os equipamentos previstos nesta unidade-modelo, mas num país que nunca implementou de fato políticas sistemáticas de bem-estar social isto acabou não ocorrendo.
O que menos gente sabe, contudo, é que da mesma maneira que foi pensada uma unidade-modelo na Asa Sul, também se conjecturou, no início dos anos 1960, a construção de uma unidade semelhante na Asa Norte — posicionada, inclusive, de forma espelhada em relação a sua congênere da Asa Sul. Tratava-se de uma iniciativa da Universidade de Brasília, que pela proximidade com a Asa Norte possuía o direito de construir unidades habitacionais destinadas a professores e funcionários em várias das superquadras da região. Tal unidade ficaria conhecida como “São Miguel”, pois como sua equivalente da Asa Sul, também teria uma igrejinha em seu centro, desta vez dedicada a este santo.
O projeto da unidade estava associado aos trabalhos desenvolvidos pelo mestrado em arquitetura e urbanismo oferecido pelo Centro de Planejamento (Ceplan) da universidade — órgão dedicado justamente a planejar, projetar e executar as instalações da UnB.
Infelizmente o projeto da unidade São Miguel não avançou, mas em uma de suas quadras (a 107 norte) foi executado um conjunto de edificações originalmente pensado para compor o complexo da unidade-modelo. A autora desses edifícios é ninguém menos que a arquiteta Mayumi Watanabe de Souza Lima, então recém-formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e desde 1963 aluna do mestrado do Ceplan.
Alguns dos edifícios propostos por Mayumi são particularmente conhecidos da população de Brasília justamente por destoarem da tipologia laminar usual que caracteriza as superquadras: tratam-se de blocos prismáticos mais compactos, com planta em “H” e caracterizados por grandes empenas de concreto armado aparente e por pilares-brises, também em concreto aparente, posicionados com pouca distância uns dos outros e tocando o solo ao longo das fachadas — gerando uma área de pilotis mais fechada e reservada.
visitando a 107N
Os edifícios de Mayumi configuram uma espécie de ambiência própria no interior da quadra — em particular pelo uso das lajes elevadas dos estacionamentos no subsolo e seus elementos de ventilação e de acesso, formando praças e jardins que articulam os blocos. Tratam-se de três torres com plantas em “H” e um edifício laminar cujo projeto respeita a implantação proposta pela arquiteta mas teve seu desenvolvimento realizado por outra equipe de arquitetos.
Visitar a 107N envolve não só penetrar um fragmento de cidade que destoa do restante das superquadras como também entrar em contato com uma pitada de arquitetura paulista — e de seus cacoetes construtivos e estilísticos — em meio aos variados blocos de habitação brasilienses.
Ousaria dizer que aqueles raros edifícios com fachadas misteriosas que tocam o solo, ainda que mantendo a permeabilidade do pilotis, apenas reiteram o caráter um tanto quanto melancólico, solitário e deslocado que possuem os espaços de Brasília — melancolia de que falava Clarice Lispector mas que também transparecia nas fotografias célebres dos espaços monumentais retratados por Marcel Gautherot como interpretados no interessante trabalho de Heloísa Espada. Aqueles blocos e seus interessantes pilares-brises impõem-se nessa paisagem próxima como prismas enigmáticos num cenário vazio e aparentemente solitário. Os edifícios de Mayumi apresentam uma beleza triste e agradável.